A
pobreza é como doença que trazemos no sangue, nunca sara.
Assim
pensa e assim o diz, se julga oportuno, ela que nasceu naquela casa de tijolo
em cima de tijolo e nem mais do que argamassa a juntá-los: bocados endurecidos
a escorrerem no avermelhado, a mostrarem-se como se fosse arte; um
desconjuntado sem reboco e, menos ainda, sem pintura.
A
casa tinha uma janelinha que deitava sobre os dois pés de couve que havia no
quadradinho ganho ao socalco e a que ela chamava, orgulhosa: o meu quintal.
Lá
do alto, assomavam, indiscretas e altivas, as marquises dos números ímpares dos
prédios que ladeavam a rua que tinham traçado os engenheiros da Câmara, depois
de mandarem derrubar a casa da Matilde e a casa da Aldegundes e umas tantas
outras que desciam, como a dela, pela ravina a semelhar que se estatelavam lá
em baixo onde corria o rio.
Perigosamente,
disseram as senhoras da Segurança Social numa das conversas a convencê-la a
mudar-se, e ela que nem pensar sair dali.
Estava já só com a menina, os pais mortos, um e outro; e, sem deixar que sequer a adivinhassem, que isto nunca se sabe, dizia, de si para consigo,
a olhar os prédios que subiam, desmesurados, céu adentro: nem morta, eu deixo o
meu quintal para ir morar numa daqueles gaiolas.
Ela
que nascera paupérrima naquela mesma casa onde a única janela mal alumiava a sala
de fora.
Uma
salinha de fora e o quartinho da menina - dizia a descrever a moradia como
ufana lhe chamava.
E explicava, com um sorriso de dentes a
precisarem de conserto, mas os da Caixa nunca mais se resolviam: eu durmo onde calha que marido nunca tive.
Nessa janelinha, pendurara uma cortina.
Um
tecido fininho e liso num branco encardido que lavava muito de vez em quando;
porque a água é uma carestia - dizia; e trazia da cisterna baldes a entornarem,
a última chuva a dar para os gastos das casas que ainda resistiam ao
realojamento, ribanceira abaixo, e o rio a deslizar sereno, até ao dia em que a
chuva foi demais e foram de roldão as casas de tijolo em cima de tijolo e nem
caiadas, e foram por ali abaixo os dois pés de couve e, disseram nos
noticiários, foi uma sorte que tivessem ficado incólumes, escorados no muro de
suporte, os prédios da rua de cima - as gaiolas, como ela lhes chamava.
O
morro deslizou como papa em direcção ao rio, era o cabeçalho dum jornal que leu
na mão de alguém, e ela mesma apareceu na televisão a explicar como se tinha
salvo.
Contou-lhes
que tinha decidido não esperar mais, e que, embora já chovesse a cântaros e
fosse tão longe, tinha ido, a menina a seu lado num banco e outro de três autocarros.
Tinha ido ver se lhe arranjavam os dentes como lhe tinham prometido na consulta
da Caixa.
E,
ainda com a câmara dirigida para ela e a repórter a sorrir-lhe, foi dizendo, com
mais altivez do que lamento, o morro lamacento a servir-lhe de cenário: a pobreza
é como doença que trazemos no sangue, nunca sara, sabe? mas na transmissão cortaram
esse pedaço, viu ela, à noite, no Centro onde a alojaram, a ela e à menina: até
lhe darem uma casa - tinham-lhe dito.
Uns meses passados, meses demasiados, foi a cerimónia de
entrega da chave de uma casa num local onde se enovelam autovias, e nem
quintal nem o rio rumorejando. Nem sequer uma marquise.
Apareceu sorrindo nos ecrãs do país inteiro, enquanto metia a chave na
fechadura da sua casa nova. Sorrindo e a afirmar com a firmeza humilde que é, tinha já percebido, o tom dos
que nada têm: a pobreza é como doença que trazemos no sangue, nunca sara.
12 comentários:
Tal e qual!
Quantos casos destes existiram e existem!
Beijos
Muito bom. Parabéns.
Cá estamos nós de novo a verdade é que quando se fala sério com o coração nas mãos, toca sempre a quem quer ler
obrigada caros amigos
a minha intenção é manter-me viva na escrita e publicar no blog incentiva
se vos tiver como leitores, mais ainda
o que noto é que os comentários e gostos que no FB abundam se publico um desenho ou um lamento (rs) morrem totalmente se faço o link para aqui
será que ninguém gosta de ler?!
abraços aos três
Muito bom, fico com inveja de não conseguir escrever assim, com tanto sentimento, parabéns e continue.
obrigda! vou continuar, sim, e conto com a sua leitura abraço
Palavras para quê? Top, como em tudo o que faz, minha querida amiga! ;)
Muitos Parabéns e que as mãos não lhe doam e imaginação não falte. Beijinhos
Já cá estou. E tenciono continuar. Longa vida ao REPENSANDO !
Obrigada vos sou Perdsro e Joana e prometo não vos desiludir! :)
Muito bom! Que murro no estômago...
Obrigada Luís, muito obrigada
É tudo tão simples, tão puro e verdadeiro que nos toca lá no fundo...
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