quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

a casa


A pobreza é como doença que trazemos no sangue, nunca sara.
Assim pensa e assim o diz, se julga oportuno, ela que nasceu naquela casa de tijolo em cima de tijolo e nem mais do que argamassa a juntá-los: bocados endurecidos a escorrerem no avermelhado, a mostrarem-se como se fosse arte; um desconjuntado sem reboco e, menos ainda, sem pintura.
A casa tinha uma janelinha que deitava sobre os dois pés de couve que havia no quadradinho ganho ao socalco e a que ela chamava, orgulhosa: o meu quintal.
Lá do alto, assomavam, indiscretas e altivas, as marquises dos números ímpares dos prédios que ladeavam a rua que tinham traçado os engenheiros da Câmara, depois de mandarem derrubar a casa da Matilde e a casa da Aldegundes e umas tantas outras que desciam, como a dela, pela ravina a semelhar que se estatelavam lá em baixo onde corria o rio.
Perigosamente, disseram as senhoras da Segurança Social numa das conversas a convencê-la a mudar-se, e ela que nem pensar sair dali.
Estava já só com a menina, os pais mortos, um e outro; e, sem deixar que sequer a adivinhassem, que isto nunca se sabe, dizia, de si para consigo, a olhar os prédios que subiam, desmesurados, céu adentro: nem morta, eu deixo o meu quintal para ir morar numa daqueles gaiolas.
Ela que nascera paupérrima naquela mesma casa onde a única janela mal alumiava a sala de fora.
Uma salinha de fora e o quartinho da menina - dizia a descrever a moradia como ufana lhe chamava.
E explicava, com um sorriso de dentes a precisarem de conserto, mas os da Caixa nunca mais se resolviam: eu durmo onde calha que marido nunca tive.
Nessa janelinha, pendurara uma cortina.
Um tecido fininho e liso num branco encardido que lavava muito de vez em quando; porque a água é uma carestia - dizia; e trazia da cisterna baldes a entornarem, a última chuva a dar para os gastos das casas que ainda resistiam ao realojamento, ribanceira abaixo, e o rio a deslizar sereno, até ao dia em que a chuva foi demais e foram de roldão as casas de tijolo em cima de tijolo e nem caiadas, e foram por ali abaixo os dois pés de couve e, disseram nos noticiários, foi uma sorte que tivessem ficado incólumes, escorados no muro de suporte, os prédios da rua de cima - as gaiolas, como ela lhes chamava.
O morro deslizou como papa em direcção ao rio, era o cabeçalho dum jornal que leu na mão de alguém, e ela mesma apareceu na televisão a explicar como se tinha salvo.
Contou-lhes que tinha decidido não esperar mais, e que, embora já chovesse a cântaros e fosse tão longe, tinha ido, a menina a seu lado num banco e outro de três autocarros. Tinha ido ver se lhe arranjavam os dentes como lhe tinham prometido na consulta da Caixa.
E, ainda com a câmara dirigida para ela e a repórter a sorrir-lhe, foi dizendo, com mais altivez do que lamento, o morro lamacento a servir-lhe de cenário: a pobreza é como doença que trazemos no sangue, nunca sara, sabe? mas na transmissão cortaram esse pedaço, viu ela, à noite, no Centro onde a alojaram, a ela e à menina: até lhe darem uma casa - tinham-lhe dito.
Uns meses passados, meses demasiados, foi a cerimónia de entrega da chave de uma casa num local onde se enovelam autovias, e nem quintal nem o rio rumorejando. Nem sequer uma marquise.
Apareceu sorrindo nos ecrãs do país inteiro, enquanto metia a chave na fechadura da sua casa nova. Sorrindo e a afirmar com a firmeza humilde que é, tinha já percebido, o tom dos que nada têm: a pobreza é como doença que trazemos no sangue, nunca sara. 



12 comentários:

wind disse...

Tal e qual!
Quantos casos destes existiram e existem!
Beijos

Anónimo disse...

Muito bom. Parabéns.

Luís Maia disse...

Cá estamos nós de novo a verdade é que quando se fala sério com o coração nas mãos, toca sempre a quem quer ler

Maria de Fátima disse...

obrigada caros amigos
a minha intenção é manter-me viva na escrita e publicar no blog incentiva
se vos tiver como leitores, mais ainda
o que noto é que os comentários e gostos que no FB abundam se publico um desenho ou um lamento (rs) morrem totalmente se faço o link para aqui
será que ninguém gosta de ler?!
abraços aos três

ze damas disse...

Muito bom, fico com inveja de não conseguir escrever assim, com tanto sentimento, parabéns e continue.

Maria de Fátima disse...

obrigda! vou continuar, sim, e conto com a sua leitura abraço

Joana Cabrita disse...

Palavras para quê? Top, como em tudo o que faz, minha querida amiga! ;)
Muitos Parabéns e que as mãos não lhe doam e imaginação não falte. Beijinhos

Pedro disse...

Já cá estou. E tenciono continuar. Longa vida ao REPENSANDO !

Maria de Fátima disse...

Obrigada vos sou Perdsro e Joana e prometo não vos desiludir! :)

Luís Bento disse...

Muito bom! Que murro no estômago...

Maria de Fátima disse...

Obrigada Luís, muito obrigada

Maré Viva disse...

É tudo tão simples, tão puro e verdadeiro que nos toca lá no fundo...

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein