Dizem que nos dias de vendaval ela aparecia. Quem a viu, foi contando a outros que não sei se a viram, mas que recontam e dizem que era linda. Uma beleza irradiada dos olhos verdes numa face que era uma amálgama de cicatrizes secas e profundas. Uma beleza sustentada num corpo meio desnudo sob uma túnica larga, molhada, colado o branco ao torneado da figura. E diziam que trazia uma camélia rosa no cabelo. É o que contavam.
Era o que narrava Lucinda a criada lá de casa.
A Lucinda que recordo dessa época dos meus anos anteriores à escola, era uma mulher de largas ancas, peito farto e estatura meã isto, assim o digo, por não ser ela gorda, mas sim encorpada.
Nessa noite, chovia e instalara-se uma forte, uma normal e fortíssima trovoada. O céu riscado de descargas, iluminava-se de relâmpagos. As folhas da mangueira batiam nas portadas das janelas. Nessa noite, eu e minha irmã não ficamos dormitando na cozinha - um favor que Lucinda nos fazia quando os nossos pais saíam, raras vezes, para um cinema ou jantar. Nessa noite, rezamos as orações mastigando a fatia de pão com doce de goiaba que Lucinda prometera se fossemos para o quarto sem choradeiras. Lavamos os dentes e a boca lambuzada e deitamo-nos. Lucinda, sentada na cadeira ao lado da minha cama tinha uma posição tão digna no pegar o livro de orações que, não sei se de lembrança ou de a rever agora, me pareceu mais do que criada fazendo de ama-seca, antes dama, aia dos príncipes que afinal ela por tal nos tinha. Lucinda, o único luxo que minha mãe trouxera para o desterro daquela oportunidade profissional que meu pai lhe gritara.
Nessa noite, dormimos toda a noite no quarto enquanto os nossos pais festejavam, mais por obrigação que por agrado, o primeiro aniversário de estadia em África do Chefe de Posto, o Senhor Sanfredo, um homem alto de cara de cavalo, cabelo penteado com brilhantina que, pensava eu nessa altura, lhe dava aquele tom avermelhado.
- Ruivo, Francisco. O Senhor Sanfredo é ruivo.
E eu lá ficava a saber que pentear o cabelo com brilhantina como a minha mãe não se cansava de bramar pela casa quando voltava de um jantar em casa dele, e ficar vermelho-pele-de-boi, era ser um ruivo.
Adormecemos logo de seguida ao sentar empertigado e devoto de Lucinda. Vagamente, parece-me ter adormecido ao som do bater das folhas da árvore na madeira da portada da janela. E talvez tenha também ouvido a chuva a cair em forte e grosso bago.
As chuvas que mais pareciam cordas de água tentando laçar a Terra. Digo isto, não referente ao que vi nessa noite, mas ao que via nas tardes de preguiça quando minha mãe nos sentava junto à cadeira onde se baloiçava, contando-nos intermináveis e gostosas, inventadas, estórias. Nessas tardes, sempre o céu se abria em chuva que rangia no telhado de zinco da casa grande. A casa que minha mãe encheu de panos e cortinas, de livros e discos e almofadas. E num canto, apesar do jardim, um cacto rodeado de pedras que trouxera de uma praia distante num passeio de jipe. A fachada da casa era quase só a enorme varanda com a cadeira de baloiço.
Nessas tardes de preguiça eu arranjava modo de saltar no largo frente à casa e ficar nu e encharcado e com os pés vermelhos cor da terra. A minha mãe chamando, mas eu se mais a ouvia, mais saboreava aquele banho de água fresca que fazia subir da terra um calor farto, insano, gostoso.
Era o que narrava Lucinda a criada lá de casa.
A Lucinda que recordo dessa época dos meus anos anteriores à escola, era uma mulher de largas ancas, peito farto e estatura meã isto, assim o digo, por não ser ela gorda, mas sim encorpada.
Nessa noite, chovia e instalara-se uma forte, uma normal e fortíssima trovoada. O céu riscado de descargas, iluminava-se de relâmpagos. As folhas da mangueira batiam nas portadas das janelas. Nessa noite, eu e minha irmã não ficamos dormitando na cozinha - um favor que Lucinda nos fazia quando os nossos pais saíam, raras vezes, para um cinema ou jantar. Nessa noite, rezamos as orações mastigando a fatia de pão com doce de goiaba que Lucinda prometera se fossemos para o quarto sem choradeiras. Lavamos os dentes e a boca lambuzada e deitamo-nos. Lucinda, sentada na cadeira ao lado da minha cama tinha uma posição tão digna no pegar o livro de orações que, não sei se de lembrança ou de a rever agora, me pareceu mais do que criada fazendo de ama-seca, antes dama, aia dos príncipes que afinal ela por tal nos tinha. Lucinda, o único luxo que minha mãe trouxera para o desterro daquela oportunidade profissional que meu pai lhe gritara.
Nessa noite, dormimos toda a noite no quarto enquanto os nossos pais festejavam, mais por obrigação que por agrado, o primeiro aniversário de estadia em África do Chefe de Posto, o Senhor Sanfredo, um homem alto de cara de cavalo, cabelo penteado com brilhantina que, pensava eu nessa altura, lhe dava aquele tom avermelhado.
- Ruivo, Francisco. O Senhor Sanfredo é ruivo.
E eu lá ficava a saber que pentear o cabelo com brilhantina como a minha mãe não se cansava de bramar pela casa quando voltava de um jantar em casa dele, e ficar vermelho-pele-de-boi, era ser um ruivo.
Adormecemos logo de seguida ao sentar empertigado e devoto de Lucinda. Vagamente, parece-me ter adormecido ao som do bater das folhas da árvore na madeira da portada da janela. E talvez tenha também ouvido a chuva a cair em forte e grosso bago.
As chuvas que mais pareciam cordas de água tentando laçar a Terra. Digo isto, não referente ao que vi nessa noite, mas ao que via nas tardes de preguiça quando minha mãe nos sentava junto à cadeira onde se baloiçava, contando-nos intermináveis e gostosas, inventadas, estórias. Nessas tardes, sempre o céu se abria em chuva que rangia no telhado de zinco da casa grande. A casa que minha mãe encheu de panos e cortinas, de livros e discos e almofadas. E num canto, apesar do jardim, um cacto rodeado de pedras que trouxera de uma praia distante num passeio de jipe. A fachada da casa era quase só a enorme varanda com a cadeira de baloiço.
Nessas tardes de preguiça eu arranjava modo de saltar no largo frente à casa e ficar nu e encharcado e com os pés vermelhos cor da terra. A minha mãe chamando, mas eu se mais a ouvia, mais saboreava aquele banho de água fresca que fazia subir da terra um calor farto, insano, gostoso.
E eu sabia que minha mãe, um dia, ia saltar nua de pés na terra vermelha sob as cordas de chuva. E eu nunca a ouvia quando ela chamava porque o seu chamar durava pouco
A minha mãe escrevia. Lembro-me do matraquear a desoras na máquina de escrever que tratava por a minha Lia nunca soube porquê. E bordava. Lembro-me de dizer que não gostava, que preferia fazer malha, como ela dizia referindo-se ao tricô, mas com tanto calor nem valia a pena. Mesmo assim, com uma só agulha, ela fez, em ráfia, dois chapéus para ela e para a minha irmã.
Raramente saía e quando era esse dia, ia com o meu pai a alguma festa que só ele sabia.
A minha mãe, enquanto se vestia, ia desenrolando ao meu pai uma lenga-lenga que nesta noite sacrificava o ruivo Sanfredo casado com uma senhora muito nova e muito bonita que não tinha livros e a quem a minha mãe nesses jantares sempre levava um que já lera.
- Podes crer que me faz pena aquela mulher. Culta e linda, casada com aquela aberração que ainda por cima proíbe a coitada de ler.
- Ele rasga, sim. E ainda se arma em galã com as negras da sanzala. Se os cipaios o apanham.
E ia desenrolando maus estares sobre o Sanfredo ruivo.
Julgo que meu pai, e seria intenção de minha mãe, ficava instruído sobre os seus anfitriões, naqueles minutos que demorava fazendo a toilete. Ter-se-á habituado, mas inclino-me a pensar que ele admirava, embevecido, aquela faceta de minha mãe mordaz, não deixando nunca de ser divertida.
À saída, quando a minha mãe se debruçou para o beijo de boas noites, ainda estávamos sentados na cozinha esperando o jantar de Lucinda. O perfume de minha mãe sabia a limão e eu quase sufoquei debaixo da manga da túnica que me caiu sobre a cara.
Eles saíram sob a chuva grossa com a trovoada ainda longe, mas um riscado intenso no céu. O Chefe de Posto fazia um ano de ter chegado, não àquele posto deslargado nos confins da Colónia, mas a África o que podia ser motivo para festejar. A casa espaçosa, era coberta a colmo.
Eu sabia-o de outros jantares, porque minha mãe narrava tudo o que via como se tivesse ido a um museu ou feito uma viagem.
Nessa noite a trovoada explodia em contínuo som e luz. Eu, se não dormisse, haveria de estar vendo o tempo que demorava o ouvir do trovão e o iluminar do relâmpago medindo a distância da trovoada como minha mãe escrevera naquele papelinho.
Ao amanhecer, os criados andavam endoidados em rezas num repetir de chorares e risos guturais e ululantes. Lucinda mandou-nos lavar e vestir, tarefas que cada um de nós já fazia sozinhos. Na cozinha deu-nos um pequeno-almoço que estranhei por trazer queijo na ementa. Não estranhei a ausência dos meus pais porque eles sempre dormiam mais umas horas nas manhãs depois de uma saída. Antes que galgássemos o exterior onde as vozes subiam de tom, Lucinda informou-nos que a casa do Senhor Sanfredo ardera nessa noite. Não deu mais pormenores. Apertou-me as mãos nas dela e pegou ao colo minha irmã que chorava.
Eu bem que percebera um desastre pelo cantar dos pretos e porque Lucinda, quando acordámos, ainda lia o livro de orações.
Esperei que me dissessem algo mais da falta dos meus pais. E, entretanto, fui lembrando que, nessa noite, a minha mãe ia vestida com uma túnica branca e levava no cabelo uma camélia.
A minha mãe escrevia. Lembro-me do matraquear a desoras na máquina de escrever que tratava por a minha Lia nunca soube porquê. E bordava. Lembro-me de dizer que não gostava, que preferia fazer malha, como ela dizia referindo-se ao tricô, mas com tanto calor nem valia a pena. Mesmo assim, com uma só agulha, ela fez, em ráfia, dois chapéus para ela e para a minha irmã.
Raramente saía e quando era esse dia, ia com o meu pai a alguma festa que só ele sabia.
A minha mãe, enquanto se vestia, ia desenrolando ao meu pai uma lenga-lenga que nesta noite sacrificava o ruivo Sanfredo casado com uma senhora muito nova e muito bonita que não tinha livros e a quem a minha mãe nesses jantares sempre levava um que já lera.
- Podes crer que me faz pena aquela mulher. Culta e linda, casada com aquela aberração que ainda por cima proíbe a coitada de ler.
- Ele rasga, sim. E ainda se arma em galã com as negras da sanzala. Se os cipaios o apanham.
E ia desenrolando maus estares sobre o Sanfredo ruivo.
Julgo que meu pai, e seria intenção de minha mãe, ficava instruído sobre os seus anfitriões, naqueles minutos que demorava fazendo a toilete. Ter-se-á habituado, mas inclino-me a pensar que ele admirava, embevecido, aquela faceta de minha mãe mordaz, não deixando nunca de ser divertida.
À saída, quando a minha mãe se debruçou para o beijo de boas noites, ainda estávamos sentados na cozinha esperando o jantar de Lucinda. O perfume de minha mãe sabia a limão e eu quase sufoquei debaixo da manga da túnica que me caiu sobre a cara.
Eles saíram sob a chuva grossa com a trovoada ainda longe, mas um riscado intenso no céu. O Chefe de Posto fazia um ano de ter chegado, não àquele posto deslargado nos confins da Colónia, mas a África o que podia ser motivo para festejar. A casa espaçosa, era coberta a colmo.
Eu sabia-o de outros jantares, porque minha mãe narrava tudo o que via como se tivesse ido a um museu ou feito uma viagem.
Nessa noite a trovoada explodia em contínuo som e luz. Eu, se não dormisse, haveria de estar vendo o tempo que demorava o ouvir do trovão e o iluminar do relâmpago medindo a distância da trovoada como minha mãe escrevera naquele papelinho.
Ao amanhecer, os criados andavam endoidados em rezas num repetir de chorares e risos guturais e ululantes. Lucinda mandou-nos lavar e vestir, tarefas que cada um de nós já fazia sozinhos. Na cozinha deu-nos um pequeno-almoço que estranhei por trazer queijo na ementa. Não estranhei a ausência dos meus pais porque eles sempre dormiam mais umas horas nas manhãs depois de uma saída. Antes que galgássemos o exterior onde as vozes subiam de tom, Lucinda informou-nos que a casa do Senhor Sanfredo ardera nessa noite. Não deu mais pormenores. Apertou-me as mãos nas dela e pegou ao colo minha irmã que chorava.
Eu bem que percebera um desastre pelo cantar dos pretos e porque Lucinda, quando acordámos, ainda lia o livro de orações.
Esperei que me dissessem algo mais da falta dos meus pais. E, entretanto, fui lembrando que, nessa noite, a minha mãe ia vestida com uma túnica branca e levava no cabelo uma camélia.
5 comentários:
Cristo, envolvi-me de tal maneira na "estória" que quando acabou fiquei de boca aberta. Não vou repetir-me. Continua escritora:) beijos
Prendes o leitor. Tens estilo. Gosto de cá vir.
Abraço.
Licínia
Do texto, ressuma o odor da terra africana em tempos de colonização; e de personagens reais que compuseram estórias da vida.. e da morte.
Abraço e bom fim de semana!
Tens um e-mail.
... lá arderam os colonizadores
pobres crianças orfãs, como serão as suas vidas daqui para a frente? encantam-me histórias particulares e individualizantes de tempos dramáticos
beijo, bom 1º de maio
Gostei do teu conto.
Para além do enredo, que foste desenrolando devagarinho no meio de um descritivo bem articulado, diria cinematográfico, a narrativa evolui com uns saltinhos no tempo para trás e, o que também é de sublinhar, evade-se do argumento principal para aflorar pormenores interessantes, que ajudam a contextualizar os acontecimentos e, o que é o teu toque de mestre neste conto (já não é a primeira vez que isso acontece), a induzir o leitor para o esquecimento da figura central da história, que aparece no início e no final, constituindo este uma surpresa bem ao teu estilo.
Parabéns. Já to disse, mas repito, é mais um conto publicável em livro. Continua.
Beijos querida amiga.
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