quinta-feira, 27 de abril de 2006

noite de chuva

Dizem que nos dias de vendaval ela aparecia. Quem a viu, foi contando a outros que não sei se a viram, mas que recontam e dizem que era linda. Uma beleza irradiada dos olhos verdes numa face que era uma amálgama de cicatrizes secas e profundas. Uma beleza sustentada num corpo meio desnudo sob uma túnica larga, molhada, colado o branco ao torneado da figura. E diziam que trazia uma camélia rosa no cabelo. É o que contavam.

Era o que narrava Lucinda a criada lá de casa.
A Lucinda que recordo dessa época dos meus anos anteriores à escola, era uma mulher de largas ancas, peito farto e estatura meã isto, assim o digo, por não ser ela gorda, mas sim encorpada.

Nessa noite, chovia e instalara-se uma forte, uma normal e fortíssima trovoada. O céu riscado de descargas, iluminava-se de relâmpagos. As folhas da mangueira batiam nas portadas das janelas. Nessa noite, eu e minha irmã não ficamos dormitando na cozinha - um favor que Lucinda nos fazia quando os nossos pais saíam, raras vezes, para um cinema ou jantar. Nessa noite, rezamos as orações mastigando a fatia de pão com doce de goiaba que Lucinda prometera se fossemos para o quarto sem choradeiras. Lavamos os dentes e a boca lambuzada e deitamo-nos. Lucinda, sentada na cadeira ao lado da minha cama tinha uma posição tão digna no pegar o livro de orações que, não sei se de lembrança ou de a rever agora, me pareceu mais do que criada fazendo de ama-seca, antes dama, aia dos príncipes que afinal ela por tal nos tinha. Lucinda, o único luxo que minha mãe trouxera para o desterro daquela oportunidade profissional que meu pai lhe gritara.
Nessa noite, dormimos toda a noite no quarto enquanto os nossos pais festejavam, mais por obrigação que por agrado, o primeiro aniversário de estadia em África do Chefe de Posto, o Senhor Sanfredo, um homem alto de cara de cavalo, cabelo penteado com brilhantina que, pensava eu nessa altura, lhe dava aquele tom avermelhado.
- Ruivo, Francisco. O Senhor Sanfredo é ruivo.
E eu lá ficava a saber que pentear o cabelo com brilhantina como a minha mãe não se cansava de bramar pela casa quando voltava de um jantar em casa dele, e ficar vermelho-pele-de-boi, era ser um ruivo.
Adormecemos logo de seguida ao sentar empertigado e devoto de Lucinda. Vagamente, parece-me ter adormecido ao som do bater das folhas da árvore na madeira da portada da janela. E talvez tenha também ouvido a chuva a cair em forte e grosso bago.
As chuvas que mais pareciam cordas de água tentando laçar a Terra. Digo isto, não referente ao que vi nessa noite, mas ao que via nas tardes de preguiça quando minha mãe nos sentava junto à cadeira onde se baloiçava, contando-nos intermináveis e gostosas, inventadas, estórias. Nessas tardes, sempre o céu se abria em chuva que rangia no telhado de zinco da casa grande. A casa que minha mãe encheu de panos e cortinas, de livros e discos e almofadas. E num canto, apesar do jardim, um cacto rodeado de pedras que trouxera de uma praia distante num passeio de jipe. A fachada da casa era quase só a enorme varanda com a cadeira de baloiço.
Nessas tardes de preguiça eu arranjava modo de saltar no largo frente à casa e ficar nu e encharcado e com os pés vermelhos cor da terra. A minha mãe chamando, mas eu se mais a ouvia, mais saboreava aquele banho de água fresca que fazia subir da terra um calor farto, insano, gostoso.
E eu sabia que minha mãe, um dia, ia saltar nua de pés na terra vermelha sob as cordas de chuva. E eu nunca a ouvia quando ela chamava porque o seu chamar durava pouco
A minha mãe escrevia. Lembro-me do matraquear a desoras na máquina de escrever que tratava por a minha Lia nunca soube porquê. E bordava. Lembro-me de dizer que não gostava, que preferia fazer malha, como ela dizia referindo-se ao tricô, mas com tanto calor nem valia a pena. Mesmo assim, com uma só agulha, ela fez, em ráfia, dois chapéus para ela e para a minha irmã.
Raramente saía e quando era esse dia, ia com o meu pai a alguma festa que só ele sabia.
A minha mãe, enquanto se vestia, ia desenrolando ao meu pai uma lenga-lenga que nesta noite sacrificava o ruivo Sanfredo casado com uma senhora muito nova e muito bonita que não tinha livros e a quem a minha mãe nesses jantares sempre levava um que já lera.
- Podes crer que me faz pena aquela mulher. Culta e linda, casada com aquela aberração que ainda por cima proíbe a coitada de ler.
- Ele rasga, sim. E ainda se arma em galã com as negras da sanzala. Se os cipaios o apanham.
E ia desenrolando maus estares sobre o Sanfredo ruivo.
Julgo que meu pai, e seria intenção de minha mãe, ficava instruído sobre os seus anfitriões, naqueles minutos que demorava fazendo a toilete. Ter-se-á habituado, mas inclino-me a pensar que ele admirava, embevecido, aquela faceta de minha mãe mordaz, não deixando nunca de ser divertida.
À saída, quando a minha mãe se debruçou para o beijo de boas noites, ainda estávamos sentados na cozinha esperando o jantar de Lucinda. O perfume de minha mãe sabia a limão e eu quase sufoquei debaixo da manga da túnica que me caiu sobre a cara.
Eles saíram sob a chuva grossa com a trovoada ainda longe, mas um riscado intenso no céu. O Chefe de Posto fazia um ano de ter chegado, não àquele posto deslargado nos confins da Colónia, mas a África o que podia ser motivo para festejar. A casa espaçosa, era coberta a colmo.
Eu sabia-o de outros jantares, porque minha mãe narrava tudo o que via como se tivesse ido a um museu ou feito uma viagem.
Nessa noite a trovoada explodia em contínuo som e luz. Eu, se não dormisse, haveria de estar vendo o tempo que demorava o ouvir do trovão e o iluminar do relâmpago medindo a distância da trovoada como minha mãe escrevera naquele papelinho.
Ao amanhecer, os criados andavam endoidados em rezas num repetir de chorares e risos guturais e ululantes. Lucinda mandou-nos lavar e vestir, tarefas que cada um de nós já fazia sozinhos. Na cozinha deu-nos um pequeno-almoço que estranhei por trazer queijo na ementa. Não estranhei a ausência dos meus pais porque eles sempre dormiam mais umas horas nas manhãs depois de uma saída. Antes que galgássemos o exterior onde as vozes subiam de tom, Lucinda informou-nos que a casa do Senhor Sanfredo ardera nessa noite. Não deu mais pormenores. Apertou-me as mãos nas dela e pegou ao colo minha irmã que chorava.
Eu bem que percebera um desastre pelo cantar dos pretos e porque Lucinda, quando acordámos, ainda lia o livro de orações.
Esperei que me dissessem algo mais da falta dos meus pais. E, entretanto, fui lembrando que, nessa noite, a minha mãe ia vestida com uma túnica branca e levava no cabelo uma camélia.

5 comentários:

wind disse...

Cristo, envolvi-me de tal maneira na "estória" que quando acabou fiquei de boca aberta. Não vou repetir-me. Continua escritora:) beijos

Licínia Quitério disse...

Prendes o leitor. Tens estilo. Gosto de cá vir.
Abraço.
Licínia

Alberto Oliveira disse...

Do texto, ressuma o odor da terra africana em tempos de colonização; e de personagens reais que compuseram estórias da vida.. e da morte.

Abraço e bom fim de semana!

Tens um e-mail.

segurademim disse...

... lá arderam os colonizadores

pobres crianças orfãs, como serão as suas vidas daqui para a frente? encantam-me histórias particulares e individualizantes de tempos dramáticos

beijo, bom 1º de maio

Nilson Barcelli disse...

Gostei do teu conto.
Para além do enredo, que foste desenrolando devagarinho no meio de um descritivo bem articulado, diria cinematográfico, a narrativa evolui com uns saltinhos no tempo para trás e, o que também é de sublinhar, evade-se do argumento principal para aflorar pormenores interessantes, que ajudam a contextualizar os acontecimentos e, o que é o teu toque de mestre neste conto (já não é a primeira vez que isso acontece), a induzir o leitor para o esquecimento da figura central da história, que aparece no início e no final, constituindo este uma surpresa bem ao teu estilo.
Parabéns. Já to disse, mas repito, é mais um conto publicável em livro. Continua.
Beijos querida amiga.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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