sexta-feira, 14 de outubro de 2005

O gato Jeremias



Queria escrever-lhe. Colocar uma folha de papel branca, sem linhas nem quadrados, em cima da secretária ou num canto da mesa da cozinha. Ao lado da folha, a sua fotografia. Aquela em que está, de mãos sujas, segurando o Jeremias. Jeremias, o nosso gato cinzento, enorme. Queria, pois, escrever-lhe uma carta sob o seu olhar. O olhar com que me olhava, segurando o gato, num fim de tarde de Maio. Sorria na fotografia. Sorria-me. Fui buscar uma caneta. Uma qualquer, desde que escrevesse em azul. Um azul de tinta, muito azul. Um azul como o azul do céu do começar a noite naquele Maio. Aquele Maio em que a fotografei segurando o gato com as mãos sujas de farinha. Porque desceu ela a escada em vez de entrar em casa? Nada nunca mais foi. Desde esse dia de Maio, nunca nada mais foi.
Mas era preciso que eu lhe escrevesse. Queria escrever-lhe. Já tinha a folha de papel e a caneta que escrevia aquele azul.
O que eu escrevi foi uma carta assim.

Minha querida
Tenho tantas saudades.
Nunca consegui perceber o que aconteceu naquela tarde de Maio.
Tu fazias bolos. Vi a massa estendida sobre a larga mesa da cozinha. Cozinha que atravessei em direcção ao jardim para fotografar as roseiras floridas. Lembras-te? Ouvi o teu zangar-te com o gato. O Jeremias saltara sobre a mesa. Ouvi-te descrever a massa salpicada com as patas do gato. Descrever, imitando um zangado que era só imitado. Assomaste à porta do jardim, o Jeremias abafado nos teus braços. Do cimo da escadaria gritaste ao quase escuro do jardim. “Olha, amor, o Jeremias anda a ajudar. Tiras uma foto?” E sorrias o sorriso com que estás na fotografia.
Depois, só tu o saberás contar. Por isso te escrevo. Para que me contes. Para que me expliques o que até hoje ninguém me soube, ou sequer tentou, explicar. E eu não entendo. Continuo sem entender como é que tu fazias bolos, sorrias, pegavas no Jeremias, pedias fotografias e, um instante só depois de eu registar o teu sorriso, já não sorrias, o Jeremias miava atordoado e os bolos queimavam-se na cozinha. Foi muito depressa, sabes? Eu nunca percebi. Entro na cozinha e...
Desde esse dia de Maio, nunca nada mais foi.

Eu sei que a carta era uma fantasia minha. Uma forma de acalentar a saudade. Gritar a precariedade deste estar vivo que tanto desatentamos. Deixei-a na mesa da cozinha onde a escrevi, tal qual a acabei. A folha escrita, aberta sobre a mesa.
No dia seguinte, relancei o olhar sobre o papel enquanto mordiscava um scone. A folha estava escrita com uma caligrafia que não era a minha e numa cor verde-água. Debrucei-me mais. Reconheci a letra. Arrepiei-me e li.
Depois de a ler sosseguei. Diz-me que naquele anoitecer, me vinha oferecer um scone acabado de sair do forno. O gato saltou assustado com o flashe o que a fez desequilibrar e cair. Acrescenta que tentou falar comigo, mas as palavras não saiam. Pede-me que fique descansado que ela está bem. Escreve no fim: toma conta do Jeremias.

Guardei a carta na pasta do correio.
Lá fora as rosas estão lindas e o sol de Verão acaricia o pelo do Jeremias estirado no cimo da escadaria em frente da porta da cozinha.

13 comentários:

gato_escaldado disse...

tem um nome giro. antes jere...Mias que escaldado. adorei. beijos

mfc disse...

Muito bem construído.
O teu gato Jeremias sempre estará lá...

folhasdemim disse...

Sorri também enquanto te lia. Beijinhos, Betty :)

wind disse...

seila, esta prosa poética emocionou-me. Desculpa a expressão, mas escreves para "caraças":)))) Um dos teus melhores textos;)beijos e bom fim de semana

Leonor C.. disse...

Lindo, simplesmente lindo... Estou emocionada, não consigo dizer mais nada.

Anónimo disse...

É deveras um conto doce que arranha uma lucidez poética, visualizei toda a cena, mas o que me saltou em cima foi o Jeremias... Adoro gatos, mesmo agora a passear em cima do monitor tenho o meu Nico, o meu eterno companheiro testemunha de todo o meu devaneio nas teclas que transforma os meus pensamentos.

Bom fim de semana, e um beijo!

mjm disse...

Ufa!...
Olha se eu tenho lido isto à noite!...
Ufa, rapariga. Puseste-me uns arrepiares, que não são de frio.
Essas coisas do "nunca mais foi" presas nas fotografias e soltas pelas lembranças...
"Ouvi-te descrever a massa salpicada com as patas do gato. Descrever, imitando um zangado que era só imitado." - (este prazer de te encontrar nestes dizeres).
Um hugginho de hugar ternura

Conceição Paulino disse...

belíssimo conto e lindo gato. Bom f.s Bjs e ;)

Cris disse...

Simplesmente lindo! O abordar da saudade através de um isoterismo tratado com amor...

Um beijo

Quem sabe... disse...

-Cada palavra, ansiava...."não, não pode ser o q estou a pensar q vem a seguir....:("

Uma detalhada e emocionante história (penso eu) q a vivi, como se dela participasse...recordando todos os gatos q já tive, e olha q uma viveu 18 anos...:)
:D adoro estes bichinhos que quando inda pequenos, querem mimos, e nos perseguem por todo o lado...e que aos poucos vão "ficando" cheios de personalidade!

-Tenho agora um amigo e cumplice novo, que ao baterem a porta de casa da minha irmã-após ele ter ido fazer uma breve soneca- para meu espanto e "tortura" 32 meninos e 1 menina, num cestinho, tinham este gatita(o), negro, com "queturnos" brancos em cada patita, bigodes e pestanas brancas, numa cara completamente negra apenas com olhos de um amarelos deslumbrante...no pescoço, parecia q se tinha "enfeitado" para uma ocasião especial, pois têm um lenço tb ele branco(claro q é um gato com bom gosto e sabe combinar o seu traje) descendo pela sua barriguita (q já está gordita e já não se sentem os quadris).
-Apenas um ...Miauuu, envergonhado, timido, solicitando q lhe pega-se...claro q perante todo este cenário irresistivel o fiz...:)
Logo se aninhou no meu pescoço.. :(
e ronronou.... :(
Isto não se faz....a quem os ama....torturar assim alguém!
A casa era da minha irmã...e ela por uma fração de seg´s q não foi abrir a porta....:O
Eu nesse dia, nem era para lá estar, e mt menos ter lá ficado, qd ela foi fazer uma soneca, ia com a minha cadela labrador, tb ela negra, ao veterinário...:O

Que gato sortudo....ou serei eu a sortuda pelo previlégio de ele me ter escolhido??

bjs salgados :)***

Lmatta disse...

Olá
Sei-lá
Gostei muito do conto.
Gato Jermias o artur gostou de ti
ão ão

lique disse...

Oh mulher, precisas de nos pôr assim com este arrepio na espinha que nos vem dessa "precariedade" aqui gritada! A gente já sabe que escreves de uma forma que não nos dá hipótese de largar... :))
Beijão

agua_quente disse...

Jesus! Até me benzi... :)) A tua escrita abrange um sem número de registos. Maravilha. Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein