a segunda parte do conto com este título que em Maio passado recebeu a menção honrosa no 26.ª edição do concurso de contos Cidade Araçatuba
Tinham-se
conhecido na festa de aniversário do Frederico Cunha.
Não
se lembra quantos anos fazia aquele amigo do Carlos.
Ela
teria vinte, ou pouco mais.
Tinham
jantado bem e bebido bastante. Um vinho caro que eram sempre os vinhos em casa do
Frederico. No regresso, desceram pelas escadas e o Carlos
colocou-lhe o braço direito sobre os ombros e deixou que escorregasse, e os
dedos da mão esquerda dele ficaram a tocar a nervura do seu seio por baixo da
axila.
Casaram
dois meses depois pelo registo com separação total de bens. Teriam desconfiado
que não ia resultar. E nem filhos. Nunca fizeram qualquer esforço. Ela tomava a
pílula e ele, naquele temor de doenças que tivesse algum dia adquirido, sempre
usou preservativo. Um casamento que durou até Ana Mafalda alugar aquele tê dois com vista para o rio e dizer-lhe
que ia deixar de morar com ele e que depois pediriam o divórcio. Amigável, dissera-lhe.
E tinha-lhe pedido para ficar com o sofá
cor
de azeitona. Não sabe porquê, mas decidira que gostava de ter aquele sofá no
meio de uma sala que fosse apenas sua. Tinham-no trazido dois rapazes duma
dessas firmas que fazem transportes. E ela tinha dito:
–
Podem deixar aí ao meio e, por favor, coloquem-no de frente para janela.
E
os rapazes tinham-no colocado na posição onde ela viria a cair dois dias depois,
ao tropeçar no fio do berbequim.
Tinham
estado casados quatro anos e nem por isso conheciam grande coisa um do outro,
conclui Ana Mafalda a olhar o rio.
E
pensa que Carlos Afonso talvez tivesse sido o autor inconfesso da outra queda,
essa realmente aparatosa, muito mais do que esta.
Nunca
lhe tinha contado. Tinha-lhe dito pouco sobre aquela queda.
Apenas
naquele dia em que ela se queixou:
–
Este tornozelo dói-me sempre que apanha humidade.
E
era já muito tarde para dizer-lhe pormenores.
Foi
depois dum passeio à serra. Regressavam já pela tardinha e era final de
Outubro. Uma humidade fria subia da terra. Ana Mafalda a colocar uma meia
elástica em cima da pomada, contou-lhe que um dia escorregara numa garrafa
amolgada e desde então aquela dor no tornozelo aparecia. E Carlos perguntou-lhe:
–
A garrafa estava amolgada em que sítio?
E
ela tinha respondido:
–
Sei lá! Era a garrafa inteira esborrachada!
Mas
Carlos Afonso precisara, sorrindo:
–
Foi na casa da tua mãe que escorregaste, cá em baixo, na rua?
E
ela confirmou que sim, que tinha sido na casa onde morava com os pais.
E
não disse mais nada.
Era
já um tempo adiantado depois de terem ido à festa de anos do Frederico Cunha. Ana
Mafalda já não queria que ele fosse o rapaz tímido que ela imaginara a amolgar
a garrafa. E não lhe fez perguntas. Não lhe disse, assim, por exemplo:
–
No dia dois de Maio de mil novecentos e oitenta e oito estavas a amarrotar uma
garrafa no bairro onde moram os meus pais? Estavas Carlos Afonso?
A
mãe fazia anos nesse dia e tinha-lhe dito: na volta do treino traz-me o bolo
que encomendei na pastelaria. E ela não tinha trazido.
Ana
Mafalda não permitiu que Carlos Afonso dissesse, sequer pensasse:
–
Olha, eu um dia também amolguei uma garrafa e deixei-a num degrau.
Não.
Ana Mafalda tinha mudado de assunto.
Pediu-lhe
que lhe fosse buscar gelo.
Ou
ter-lhe-á pedido que fosse à rua buscar um maço de tabaco.
Não.
Ela nunca iria ter a certeza de que tivesse sido ele o rapaz tímido que amolgou
a garrafa. Não. Ela não tinha querido que ele fosse o rapaz da garrafa
amolgada. Era já muito tarde na vida de um e outro.
Depois,
houve aquela noite.
Carlos
Afonso apareceu no sexto-frente com o Frederico Cunha. Vinham ambos bem bebidos
a saírem do elevador no sexto-frente. Tinham emborcado, copo a copo,
cada um a sua garrafa de um tinto caro que era o vinho que sempre tinha havido
em casa do Frederico.
Tinham
vindo de autocarro.
E
depois que comeram umas sandes, Ana Mafalda dormiu enroscadinha no sofá verde,
e deixou que eles dormissem no quarto.
Dois
dias depois, disse:
–
Olha, Carlos, aluguei um tê dois com
vista para o rio. Depois, divorciamo-nos. Amigável, ouves-me?
E
trouxe o sofá verde, e aquela quase certeza de que Carlos Afonso podia ter sido
o rapaz tímido que ela imaginara quando escorregou no plástico esborrachado.
Ana
Mafalda a olhar o rio depois de ter tropeçado.
2 comentários:
Adoro as tuas descrições.
Beijos
Desejo-te um excelente Natal na companhia dos teus:)
Bjs
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