– Ai que pirulitantes que estais – dizia a minha mãe a olhar-nos.
E a gente de esguelha, a gente a
esconder, nem sabíamos o que mais escondêssemos sob os olhos dela tão
penetrantes, e a sua voz repetindo:
– Vamos lá então saber por onde
andaram pirulitando.
A vida inteira, de cada vez que alguém
me fez ficar numa fila, assim de esguelha, assim em espera que alguém dissesse,
ou enquanto alguém fazia um discurso, palestrava ou simplesmente distribuía
trabalho: tu fazes isto, tu vais para aquele lado, como aconteceu, anos
seguidos em cada manhã em que estive a trabalhar na fábrica de distribuição de
materiais de apoio a hospitais e outros serviços de saúde, eu sempre na espera
que dissessem, com a mesmíssima voz cava, doce, tanto mais doce e cava quanto
mais a mãe queria saber:
– Então vamos lá: por onde andaram pirulitando
os meus meninos?
Se bem que, pela vida fora, nunca
ninguém tivesse ousado sequer imitá-la, e no entanto, também nunca ninguém soube
apagar aquela imagem que éramos os três, a Inesinha no meio, e a mãe sempre com
uma bata de flores, o sutiã a ver-se à transparência e as cuecas, e tantas
vezes na mão uma tesoura com que ora cortava as barrigas dos peixes
desmesurados que o pai pescava no lago, como podava as roseiras ou cortava
madeixas de cabelos de cada um da gente:
– Anda cá Miguel que esse cabelo
precisa de ser aparado.
E eram os caracóis empeçados do meu
irmão mais velho a serem debastados.
Ou era a minha vez, e a mãe comentava
sempre:
– Não sei como me saíste assim tão
russo meu malvado, olha que os teus irmãos ao menos saem à gente.
Eu branquinho, loiro e de olhos azuis.
– Espécie rara, este filho – ria ela
com as vizinhas.
E que ainda um dia me havia de
fotografar e ganhar um concurso. A minha
mãe dizia:
– Olhe que lindo que é o meu mais
novo.
Para o resto da vida eu ouvi a voz dela, já
mesmo quase nada loiro, as entradas e a careca,e as cãs saltitando, e ainda
assim eu a ouvi-la na voz das mulheres que me segredavam:
– És um homem lindo, Ernesto Semedo.
A voz da mãe dizendo: Ai que pirulitantes
que estais.
2 comentários:
As mães são assim:)
Beijos
Lindo! Uma onda de ternura invadiu-me e de recordações, também!
Adoro a forma simples, mas tão rica, de escreveres. Obrigada.
Um forte abraço
Otília Martel
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