sexta-feira, 11 de outubro de 2013

pirulitando


– Ai que pirulitantes que estais –  dizia a minha mãe a olhar-nos.
E a gente de esguelha, a gente a esconder, nem sabíamos o que mais escondêssemos sob os olhos dela tão penetrantes, e a sua voz repetindo:
– Vamos lá então saber por onde andaram pirulitando.
A vida inteira, de cada vez que alguém me fez ficar numa fila, assim de esguelha, assim em espera que alguém dissesse, ou enquanto alguém fazia um discurso, palestrava ou simplesmente distribuía trabalho: tu fazes isto, tu vais para aquele lado, como aconteceu, anos seguidos em cada manhã em que estive a trabalhar na fábrica de distribuição de materiais de apoio a hospitais e outros serviços de saúde, eu sempre na espera que dissessem, com a mesmíssima voz cava, doce, tanto mais doce e cava quanto mais a mãe queria saber:
 – Então vamos lá: por onde andaram pirulitando os meus meninos?
Se bem que, pela vida fora, nunca ninguém tivesse ousado sequer imitá-la, e no entanto, também nunca ninguém soube apagar aquela imagem que éramos os três, a Inesinha no meio, e a mãe sempre com uma bata de flores, o sutiã a ver-se à transparência e as cuecas, e tantas vezes na mão uma tesoura com que ora cortava as barrigas dos peixes desmesurados que o pai pescava no lago, como podava as roseiras ou cortava madeixas de cabelos de cada um da gente: 
– Anda cá Miguel que esse cabelo precisa de ser aparado.
E eram os caracóis empeçados do meu irmão mais velho a serem debastados.
Ou era a minha vez, e a mãe comentava sempre: 
– Não sei como me saíste assim tão russo meu malvado, olha que os teus irmãos ao menos saem à gente.
Eu branquinho, loiro e de olhos azuis.
– Espécie rara, este filho – ria ela com as vizinhas.
E que ainda um dia me havia de fotografar e ganhar um concurso.  A minha mãe dizia:
– Olhe que lindo que é o meu mais novo.


 Para o resto da vida eu ouvi a voz dela, já mesmo quase nada loiro, as entradas e a careca,e as cãs saltitando, e ainda assim eu a ouvi-la na voz das mulheres que me segredavam: 
– És um homem lindo, Ernesto Semedo.


A voz da mãe dizendo: Ai que pirulitantes que estais.

2 comentários:

wind disse...

As mães são assim:)
Beijos

Menina Marota disse...

Lindo! Uma onda de ternura invadiu-me e de recordações, também!

Adoro a forma simples, mas tão rica, de escreveres. Obrigada.

Um forte abraço

Otília Martel

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein