quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

em dia de aniversário





encostaria a minha cabeça nos joelhos
não nos de outro, em jeito de pedir que me fizesse um afago, mas nos meus próprios
acocorar-me-ia num novelo e ficaria assim o dia inteiro
e ficaria toda a noite
e quando fosse manhã, se ainda não tivesse enregelado, se ainda não tivesse adormecido todo meu lado esquerdo, ficaria acocorada a receber uma nesga de sol que entrasse pelo quarto
sentada no tapete fofo, apoiaria um cotovelo na manta de quadrados
lã pura que costurei com pedaços de casacos velhos
usei também quadrados de um xaile com que tapei barrigas – um xaile que servia de resguardo em tempos de se ser discreta em tudo o que lembrasse, ainda que remoto, que ali havia sexo
enrolar-me-ia nesse cosido de recordações como se fosse um esconderijo
como naquelas construções que fazíamos com mantas e lençóis nos dias de chuva em que não podíamos brincar na rua nem no quintal, e no sobrado estavam, em visita, os nossos bisavós
ficaria assim enrolada, um dia a seguir ao outro ou, ao menos, no dia do meu aniversário
e contaria os segundos pelo bater do sangue, o pulsar ritmado do coração, o respirar que seria manso e sem ruído
e se dormisse,
e dormiria se ficasse largo tempo nessa posição quase fetal
se dormisse, sonharia sonhos em que o mar seria negro a despontar cristas de espuma, e as aves marinhas haviam de confundir os seus vôos verticais com os cordões da chuva a cair de um céu riscado por coriscos
um céu repleto de nuvens a tremeluzir os azuis e lilazes das descargas
sonhos de praias ensolaradas, seriam sonhos demasiados para esse meu ficar assim acocorada
sonharia, isso sim, com cidades a arderem na loucura de um concerto de guitarras, ou sob o fogo que se tivesse gerado pelo derrube de uma carroça
um carro de bois vindo dos tempos em que o chão que as bestas pisavam era alumiado por candeeiros de fogo colocados de um e outro lado do cabresto
eu encaracolada com a cabeça nos joelhos, teria as duas mãos a segurar as pernas, os dedos unidos numa trama muito justa
e seria quase certo que, num dado instante de ser eu assim aconchegada em mim mesma,
num momento desde há muito inscrito no destino – no meu, e no dos deuses que me tinham concebido – os braços iriam, devagarinho, cair-me, um de cada lado do corpo

por toda a eternidade
ou no escasso instante do prazer da carne



imagem : GustaveKlimt - trecho de Beethoven frieze

2 comentários:

wind disse...

Belíssimo!
Beijos

Jorge Pinheiro disse...

O instante é facto escasso, mas às vezes tem o seu interesse :))

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein