encostaria a minha cabeça
nos joelhos
não nos de outro, em jeito
de pedir que me fizesse um afago, mas nos meus próprios
acocorar-me-ia num novelo e
ficaria assim o dia inteiro
e ficaria toda a noite
e quando fosse manhã, se
ainda não tivesse enregelado, se ainda não tivesse adormecido todo meu lado
esquerdo, ficaria acocorada a receber uma nesga de sol que entrasse pelo quarto
lã pura que costurei com
pedaços de casacos velhos

enrolar-me-ia nesse cosido
de recordações como se fosse um esconderijo
como naquelas construções
que fazíamos com mantas e lençóis nos dias de chuva em que não podíamos brincar
na rua nem no quintal, e no sobrado estavam, em visita, os nossos bisavós
ficaria assim enrolada, um
dia a seguir ao outro ou, ao menos, no dia do meu aniversário
e contaria os segundos pelo
bater do sangue, o pulsar ritmado do coração, o respirar que seria manso e sem
ruído
e se dormisse,
e dormiria se ficasse largo
tempo nessa posição quase fetal
se dormisse, sonharia sonhos
em que o mar seria negro a despontar cristas de espuma, e as aves marinhas haviam
de confundir os seus vôos verticais com os cordões da chuva a cair de um céu riscado
por coriscos
um céu repleto de nuvens a tremeluzir
os azuis e lilazes das descargas
sonhos de praias ensolaradas,
seriam sonhos demasiados para esse meu ficar assim acocorada
sonharia, isso sim, com
cidades a arderem na loucura de um concerto de guitarras, ou sob o fogo que se tivesse
gerado pelo derrube de uma carroça
um carro de bois vindo dos
tempos em que o chão que as bestas pisavam era alumiado por candeeiros de fogo colocados
de um e outro lado do cabresto
eu encaracolada com a cabeça
nos joelhos, teria as duas mãos a segurar as pernas, os dedos unidos numa trama
muito justa
e seria quase certo que, num
dado instante de ser eu assim aconchegada em mim mesma,
num momento desde há muito
inscrito no destino – no meu, e no dos deuses que me tinham concebido – os braços
iriam, devagarinho, cair-me, um de cada lado do corpo
por toda a eternidade
ou no escasso instante do
prazer da carne
2 comentários:
Belíssimo!
Beijos
O instante é facto escasso, mas às vezes tem o seu interesse :))
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