terça-feira, 30 de junho de 2009

Maria Luisa

Dobrei-me sobre o muro baixo e mirei o regato transparente que corria a par do caminho que passava ao lado da casa.
Debrucei-me a ver se era verdade que se me via o rosto rubro depois que ficava a olhar a janela do outro lado: uma janela com portadas de ripinhas horizontais, pintadas num tom quase encarnado. E digo quase pois para mim, a esse tempo, encarnado era o sangue que jorrava de cada um dos meus joelhos quando tropeçava e caía, quase sempre correndo ou a roçar as pedras de um valado onde buscava um qualquer tesouro. Vermelho seria mais a cor que Laura me dizia que eu tinha o rosto, e o pescoço e as orelhas, quando uma das janelas se abria de em par, ou que fosse uma nesga. Assim que se iniciava o movimento da portada, eu ficava quedo e subia-me ao rosto todo o sangue do corpo. Era como, rindo muito, me descrevia Laura.
- Ficas tão vermelho quando ela aparece...
Laura dizia isso e acrescentava numa sinceridade sem cerimónias: aquela parva.
Nesse dia nem fora porque Laura estivesse comigo sentada no banco caiado que havia ao lado do poço. Nem seria preciso, que eu bem senti invadir-me aquele sufoco na garganta, aquele aperto na barriga e no peito, e o rubor, esse dito vermelho que eu buscava ver na água transparente que corria àquela hora na valeta, ao ladinho do muro, água que vinha do regar das hortaliças.
O que eu vi espelhado, dois palmos abaixo da cara que dependurei no muro, mal preso pelas duas mãos no rebordo arredondado, o que eu vi, foram dois olhos a olhar-me espantados e uma melena muito loira que sombreava todo o rosto: nem vermelho e nem sequer um ar que traduzisse aquele sentir o sangue a latejar nas fontes e uns piquinhos remexendo-se como se eu tivesse uma miríade de duendes a saltitar das pernas para o pescoço e deste para as zonas mais ignotas e esquecidas do meu corpo. Saltei daquela posição de desconforto e fiquei olhando a casa onde ela espreitara, como se fora aparição sagrada, que eu ouvia a criada Emília dizer que se são mortas ainda anjinhos, aparecem a pedir que não as chorem, que as deixem descansar na paz do outro mundo.
Eu olhava a casa de janelas vermelhas e corava, pois nem era ela morta, pequenina, nem aparecia por outra razão que não fosse provocar-me. E Laura, minha mana do meio, que dos cinco eu era o mais novito e único menino, Laura gostava de brincar com aquele sentimento gorduroso que era eu estar apaixonado pela menina da casa da frente e nem lhe saber o nome e corar tanto que alastrava pelo pescoço, mal ela mostrava a ponta do cabelo ou o folho bordado de um bibe.
Eu tinha seis anos, ou seria sete, e era fim de um Verão em casa dos avós.

Daqui a pouco, oiço que será dentro de meia hora, será rezada missa de corpo presente.
Chamava-se Maria Luísa e morreu ontem, de velhice, solteira, aos noventa e dois anos.
- Nem deu trabalho – diz o pessoal que trabalha na casa.
E eu, que tive um ror de filhos e várias mulheres e andei pelo quatro cantos, estranho que nem dobrem a finados, que se mantenha mudo o sino da Igreja e fico a olhar as janelas ainda pintadas de vermelho e lembro o regato que já nem corre, o fio de água transparente onde tentei ver o corar que era suposto cobrir a minha pele.

4 comentários:

Paula Raposo disse...

O teu modo fabuloso de contar...gostei particularmente do 'sentimento gorduroso'. Muitos beijos para ti.

wind disse...

Escritora, tão lindo este teu conto:)
Acho que todos temos memórias de infância.
Beijos

Anónimo disse...

SOBERBO! Li de um fôlego! Estou recuperando/arfando
Maria do Sul

Manuel Veiga disse...

excelente a tua escrita.

hoje junto o elogio à admiração. de sempre...

beijo

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein