sábado, 20 de junho de 2009

cacho de uvas

Desce a rua e leva na mão um cacho de uvas. Um cacho de uvas de bagos redondos, num saquinho transparente de papel celofane: esse papel que soa quando lhe mexemos. Um papel que chora ou ri. Um papel que não fica indiferente quando embrulhamos nele o que quer que seja. Daniel leva o cachinho rua abaixo, nesta manhã de Outubro, e segura-o com muito jeito, para que não se esmague. Quem o olhe, há-de ver-lhe um sorriso pendurado no canto dos lábios e uma tristeza doce nos olhos azuis.
Daniel a subir os vinte e tal degraus que dão acesso à porta de entrada do Hospital Distrital. Leva o passo de quem já fez aquela subida muitas vezes, mas nem por isso o seu subir é descuidado. Tem o ar de quem aguarda, de quem espera que lhe digam alguma novidade. Sobe, nem muito devagar nem depressa demais: um degrau de cada vez. Deposita cada pé na largura inteira do granito e descansa o corpo antes que erga o pé seguinte: um degrau acima, cada vez mais perto dela, deitada há um ror de dias na cama lisa, esticada, que sempre lhe parece um caixão forrado onde a verá um dia, mas não recorda, nem sabe que já foi. Olha-a: ela nem sequer recostada, enrolada em ligaduras, muda, os dois olhos, que assim ainda parecem maiores, espreitando, sorrindo ao que ele lhe leva cada dia: ontem foram morangos e hoje leva-lhe um cachinho de uvas moscatel de que ela gosta tanto. Embrulhadas no papel celofano que resmalha de cada vez que move o braço: como se chorasse, como ele vai chorando a subir cada degrau, a passar os dois batentes envidraçados, a subir mais a meia dúzia de degraus até à enfermaria. Outra vez. Já lá vão dois meses. Em cada dia alguém dizendo: Senhor Antunes, que é esse o nome dele, não volte que ela hoje não o recebe. E ele sorri com uns olhos muito tristes, a balançar de leve o cabelo que lhe cai na testa, como se num cumprimento. E sobe mais um degrau até à porta onde está escrito: unidade de queimados, serviço de urgência. Hoje traz-lhe uvas. Coloca o embrulhinho ao lado da cama número dois. Nem diz uma palavra. E sai. Quem o olhar, como faz a enfermeira que já o conhece, pode ver que ele chora uma lágrima grossa e mais outra: um cacho de lágrimas que hoje lhe saem em soluço.
Daniel Antunes, trinta e quatro anos, a visitar a namorada queimada no desastre que tiveram de carro. Daniel que não ouviu quando lhe disseram: lamentamos muito. Nunca ouviu dizerem-lhe. Vem vê-la cada dia. Ver-lhe os olhos que sorriem por baixo de tantas ligaduras e trazer-lhe um presente de fruta.

4 comentários:

Paula Raposo disse...

A tua maravilhosa maneira de contar...gostei muito de te ler, neste cuidado nos pormenores. Um beijo para ti.

wind disse...

Escritora, toda a descrição emotiva passa para nós.
És excelente nisso.
Adoro ler-te!
Beijos

Ana Paula Sena disse...

Há sempre textos excelentes para ler e desfrutar, aqui, no Repensando. Tenho tido pouco tempo para os apreciar devidamente. Mas prometo voltar.

Face à indiscutível qualidade, deixei ficar um prémio para si, no Fio de Ariadne.

Beijinhos :)

Ana Paula

Mateso disse...

Pinga a ternura em cada degrau sopesado pelos bagos maduros de doce.
Uma pequena maravilha. Parabéns!

Bj.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein