domingo, 31 de maio de 2009

confissão

- Senhor padre…
Emília persignou-se e prosseguiu:
- eu pequei…
E fez um silêncio como se fora para dar intensidade ao que dirá depois. Não que assim pensasse, que Emília nem sabia o que e como diria o seu pecado. E ia tossicando. E deslocava o apoio do corpo de um joelho a outro. Chegavam-lhe cheiros pesados a tabaco e a estômago que estivesse a digerir o almoço. Emília prosseguiu, hesitante:
- Eu nem o conhecia, senhor padre…
E engoliu saliva demasiada como se estivesse travando a palavra, dando tempo.
Do interior do receptáculo, um som cavo. Era a voz do padre:
- Continue, minha filha, continue…
E Emília, embasbacada daquele tom de pressa que diminuía o valor do seu pecado enorme, puxou mais, para que lhe tapasse a testa, o véu enrameado e branco. O véu que convinha a uma virgem. Prenda da madrinha pela comunhão solene de Emília, que nem sabia o que contasse, o que dissesse a Deus que vira tudo: se os pormenores que até a ela, agora, lhe pareciam escabrosos, se confessar por alto, dizer apenas, como disse:
- Foi na feira. Ele pegou-me no braço e meteu-me na tenda.
Disse a medo. E dizia muito, que nem precisava dizer o lugar aonde. Mas não dizia quase nada. Emília pressentia-o, ela que pecara em palavras, pensamentos e actos, a querer aliviar-se desse peso, a querer confessá-lo.
Desde que se erguera a feira, dera em perceber que o rapaz a olhava, lhe jogava sorrisos, lhe oferecia senhas para os carros. E ela a fugir do caminho que levava da escola para casa, ela a convidar as amigas para mais uma ida a ver de carrosséis e carrinhos de choque, a comprar uma enfiada de bolotas, umas castanhas assadas. Ela a dizer à mãe que estava em casa daquela amiga e mais da outra: até mais tarde.
A voz do padre que a traz ao real, que é ela estar ajoelhada a confessar-se:
- Continue, minha filha, prossiga…
Emília balbucia, que sabe senhor padre eu nem me fiz rogada: sorri-lhe de igual ao sorriso dele.
- Gostou dele?
Era a voz do padre, suave. E Emília respondeu: Sim, senhor padre. Eu apaixonei-me. E sorriu, nervosa, envergonhada. Emília a dizer: passei até mais vezes na zona onde ele regateava preços. A dizer que não, senhor padre, que não fora levada. Dirá assim se o padre perguntar. Mas ele não pergunta isso. Ouve-a. Muito atento, arrotando azedos e ela dizendo que o rapaz a beijou na porta da tenda onde guardavam os barros. Sim, sim, já a beijara antes, por detrás dos fritos. Fora o padre a perguntar: só dessa vez? Que ele há-de perguntar mais, depois que Emília arranje coragem de dizer aquilo: que se engalfinharam em cima de púcaros e alguidares.
Emília nem precisa saber que pormenores confessar. O padre irá perguntar: fizeste isto? E há-de descrever como se lá estivesse estado. E ele fez-te assim depois? e mais um desfiar de pormenores que Emília perceberá que o padre tem a lista inteirinha, esmiuçada, dos pecados dela. Nem precisa esforçar-se em escolher o que dizer.
Foi porque o padre perguntou, que Emília disse que fizeram gritos e risos e outros ruídos desalmados. Ela não disse que desejou que ficassem perdidos no barulho das carrosséis e carrinhos de choque e almariações de gentes a chupar açúcar em rama e torrão de Alicante. Que os ruídos tivessem sido engolidos. Desejou depois, acordada pelas noites, rememorando o gozo e culpando-se do pecado que agora confessava. O pecado da carne que ela nem sabia muito bem onde começava e onde terminava. Ajudava-a o padre. A indagar cada pormenor, que nem Emília sabia se acontecera sequer o que ele indagava:
- Ele lambeu?
- Ele chupou?
- E tu que lhe fizeste?
E Emília a confessar, ponto por ponto, o seu pecado enorme. E o padre a perguntar, depois de Emília muito confessar:
- Foi só dessa vez?
E Emília a responder:
- Sim senhor padre!
Emília a não confessar a pena, o desgosto, de ter que dizer isso: foi só dessa vez, sim, senhor padre. Uma única vez. Um só pecado. Emília a afugentar a dor, que tenha sido uma única vez, Emília a pecar também disso, e o padre a dizer, assim, sem mais nem menos, sem que ela pudesse confessar-lho:
- Vai em Paz, que o Senhor te acompanhe…
Nem uma salve rainha, nem um terço, uma novena, que ela pecara para mais do que isso.
Emíla limpa o ranho e desdobra-se, do de joelhos, com a suavidade do espanto.
O padre deixa o confessionário em passo lesto, persignando-se enquanto fecha os batentes em ripinhas pretas.
Emília fica sentada na igreja a chorar, pensa ela que seja, pela remissão do seu pecado.

4 comentários:

wind disse...

Escritora, excelente conto, com fabulosas descrições físicas e emocionais.
Beijos

Paula Raposo disse...

A tua maneira espantosa de contares...fico deliciada a ler-te! Muitos beijos.

Anónimo disse...

Os senhores padres, os senhores padres... Alguns deles não conseguirão resistir ao pecado da gula, neste caso de se lambuzarem com as culpas dos outros... Beijo!

samartaime disse...

Esses casos desinspiram-me. Estou como o Saramago: cada dia que passa fico mais ateia!

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein