quarta-feira, 4 de março de 2009

cheiros cor-de-rosa

Diz-me ela que eram cheiros aprisionados numa densa rede de estranheza.
Não sabe descrevê-los nem aos passos. Dizer assim: atravessou a rua e vinha um carro do lado de baixo. E não era provável que isso se desse, qualquer que fosse o sentido, que ao tempo, era mais certo que fosse gente vinda pelo seu pé ou um carro de mula ou uma bicicleta. Ela não sabe recontar. Nem isso, nem se ia receosa por andar na rua sem ter dito à mãe que o fazia. Mas tem por certo que atravessou uma estrada em frente do portão da escola. E confirma que era mesmo uma estrada e não uma rua larga ou uma simples rua.
Seja como ela o recorda: uma estrada, que terá atravessado saltitando e balançando um e outro braço no contentamento de ter sido escolhida de entre todas da sala, ela uma menina que nem era da cidade, estava de passagem.
Por mais que faça esforço, recorda muito pouco para além dos cheiros. Diz-me que cheirava a chuva. Mas que cheiro é esse, pergunto eu, que o cheiro de chuva depende de se estava um dia de Abril e uma nuvem decidiu rebentar em cima dos favais já barrigudos, ou se era Janeiro e havia um continuado abrir de águas que iria durar até Fevereiro e já vinha em aguaceiros desde o Natal, com uma aberta de dois dias num sol de raios pasmosos que nem para secar umas cuecas quanto mais uma saia de lã ou um cobertor.
Dizer que cheirava a chuva enquanto ela ia da escola até à casa da professora, é dizer quase nada e nem sequer ficarmos a saber se chovia no percurso que terá feito em passinhos saltitados, com os braços balançando soltos ou com alguma coisa agarrada ao corpo que podia ter sido um livro . Ou talvez levasse um guarda-chuva dado pela professora recomendando que o abrisse se caísse chuva para que não se molhasse a sua filha. Talvez tenha sido assim, no dia em que andava na terceira classe e caminhou sozinha por uma rua larga que se abria, num virar da esquina, numa outra rua que era onde ficava a casa da professora.
Ela não recorda pormenores. Não mais do que dizer que havia uma escada, com um corrimão de madeira, encerada em castanho-escuro. Uma escada muito inclinada que ela terá subido, um passo depois de outro passinho, com as meiinhas que deviam ser rendadas na bainha. Ou nem seriam, que essas a mãe só lhas calçava para a missa, ao domingo. Seriam umas peúgas curtinhas de algodão, a sobrarem dos sapatos de camurça com cordões. Conjecturas, que nem ela se recorda dos sapatos que levava nesse dia e nem de como subiu a escada e sequer sabe de outras meias e sapatos que teria quando era menina na terceira classe.
Mas ela garante que o odor que lhe ficou não recende a cera e nem ao leite morno que a filha da professora bebericava sob o olhar da criada, que disso lembra-se ela muito bem pois a rapariga disse-lhe assim, mal ela chegou ao patamar: espera aí que eu vou ainda penteá-la. E terá rodado calcanhares pelo corredor deixando-a sozinha, ela, vaidosa que estava de ter sido escolhida para ir buscar a filha da professora.
Terá então sentido o cheiro que era um cheiro cor-de-rosa, um cheiro de flor que empalidece antes do cair das pétalas sobre a mesa.

Talvez que a criada tenha pedido à professora uma folga para ir ao enterro do pai atropelado por uma junta de bois. E talvez tenha sido disso que ficou distraída. E pelo mesmo motivo tenha deixado em desarrumo a casa. Ou terá sido apenas enquanto penteava as tranças da filha da patroa. O certo é que a deixou sozinha pelo corredor espreitando portas escancaradas, com o coração a pular, que tanto lhe pulsou o sangue ao olhar as sombras sobre as colchas, os enroladas de lençóis, as almofadas com bordados e as bases dos frascos de perfume que faziam ondulados nos espelhos: três espelhos olhando-se uns nos outros.

Ela terá trazido a menina pela mão, como lhe fora recomendado. Terá, assim, virado a esquina da rua e depois atravessado a estrada. E terá entregue a filha à professora e ter-se-á sentado na carteira e seguido a lição de leitura ou o ditado.
Deste ou de outro modo, terá acontecido.
Mas o que ela nunca mais esqueceu foi aquele odor exalado das fronhas, dos lençóis bordados, dos folhos e entrefolhos e mais dos cortinados e dos frascos desrolhados a brilharem sombras e das caixas aspergindo pós em algodões em rama. Cheiros de camas mal acordadas a voltearem-se até ao corredor e até hoje.

6 comentários:

Anónimo disse...

'Tás proustiana com a roupa da casa, e muito bem. Mas também te digo, se fosse hoje, era a professora que ia à chuva que se lixava, e era se quisesse ganhar algum, e se não levasse umas valentes vergastadas no lombo com a sombrinha molhada por ter encharcado o degrau da entrada com a dita, então aí, sim, é que ela podia dizer que tinha uma profissão e peras! Beijos!

Mateso disse...

Obrigada, na verdade por muito que se leia... é o resultado. Na verdade osom riscava...
Já está emendado.
Também o farei com todo o gosto.
Bj.

wind disse...

Escritora, excelente descrição.
Beijos

Mateso disse...

Ora cá vamos nós, cabe-me o primeiro papel.... hum, vai ser dificil mas.... vamos lá então.
O texto,como é hábito transmite sensações, daquelas que pensavamos já esquecidas, porém sabes trazê-las de regresso à memória. Para não plagiar, diria que és excelente na descrição se sensações (recordo-me do Luandino, visualizei e senti totalmente o cheiro do mato, do suor, o ambiente... ) ,a adjectivação torna-se suave por que a utilizas
em toada , em aliterações .
Há uma forte utilização de imagens recorrendo a aspectos sensoriais para, e partir daí, provocas uma forte evocação afectiva. Em resumo, gosto muito do texto e da viagem à infância, não desbragada de sentir .
Um bom texto.
Tentei, se calhar não era o que desejavas.
Bj.

Benó disse...

Recordo... sapatos de atacadores e soquettes arrendados ou meias até ao joelho e o cheiro do pão quente com banha cor-de-rosa.
Gostei de recordar os cheiros que tão bem descreves.
Um conto que nos recorda o tempo que já passou há muito.....

CNS disse...

Os cheiros são os tunéis para a memória. Sugam-nos. E pintam os tempos verbais com os matizes que pingam das mãos. Das tuas.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein