Maria Emília a entrar numa loja da Avenida.
A saia pregueada quase lhe tapa a perna. Arredondara, ela que fora
esguia e magra. Ela aumentada de carnes na montra que a multiplica ao
infinito.
Dezenas de si, ali espelhadas.
Mas Maria Emília não se olha. Maria Emília olha, sim, as
camélias.
Flores prateadas a decorar vestidos.
Uma camélia simples. Uma flor de enfeitar decotes.
Um adereço caricato se o tivesse ela naquela tarde em que saía do
liceu com o caderno azul debaixo do braço. Estava fresco, e colocara por cima
do vestido um casaquinho de malha vermelho abotoado até junto do pescoço com
uma fiada de botões pequeninos. Nenhuma camélia rematando nesse dia em que fez
o exame. Distinção, estava escrito na pauta. E ela andando sem saber para onde:
o mundo a desabar e no entanto aquela nota grande.
Não tinha camélia, então.
Nenhuma camélia que pudesse multiplicar-se em muitas, muitas flores,
um mar de flores, cada uma igual à flor que usou na noite do baile sobre o
vestido azul.
Um vestido de veludo com decote largo.
Fizera-o a costureira que ia às quintas: “para os arranjos”, era
como dizia a sua mãe. Vinha sempre nesse dia, a menina Aninhas, duas fiadas de
dentes pequeninos e uns óculos de míope. A costureira debruçava o nariz adunco
sobre cada tecido. Foi ela que lhe fez o vestido que levou ao baile. O vestido
de veludo a roçar-lhe os pés tinha uma camélia prateada enfeitando o decote.
Uma flor de papel encerado com duas folhas verdes a servir de suporte a um
fecho prateado em cabeça de alfinete.
A flor ali desdobrada em dezenas, centenas, talvez milhares, e
outros tantos seios sobrando de decotes redondos e bicudos e quadrados. E Maria
Emília olhando as mamas que nem eram as que ela levara ao baile do liceu, essas
que espreitavam muito tímidas no decote do vestido de veludo.
E nem naquele mar de flores havia uma camélia que fosse igual à
que ela pusera nessa noite, indecisa entre colocá-la no seio ou junto ao ombro.
Não ficara em nenhuma gaveta. Nem a tinha deixado nos sacos que
não couberam no fazer das malas. No dia em que o navio apitou no porto,
Maria Emília tinha-a pregado no vestido verde. Nem pensava então que
poderia não voltar.
Não mais tornar a ver o redondo da baía e nem mais cheirar o odor
da terra e do corpo das gentes. “O cheiro do amor”, assim diria Maria Emília
mais tarde. Disse-o apenas quando percebeu o que queria dizer essa interjeição.
Já se lhe engordara a perna esguia, aquela que cruzava e descrusava, nos tempos
de ser dia antes de uma coisa importante, como seja um exame ou ter sido pedida
em casamento.
Maria Emília fazendo listas de convidados sentada na mesa de
pau-preto, a mesma em que decorava nomes, fazia intermináveis resumos, resolvia
equações.
Dezenas, centenas de mesas com um mata-borrão cor-de-rosa no tampo
e os cadernos da escola. E os convites em papel rosado com um rebordo doirado
em volta.
Centenas, milhares de imagens, entre um mar de camélias.
Letras e mais letras. Tintas azuis. Riscos de vermelho
sublinhando. Páginas e páginas de coisas que esqueceu. Caligrafias entre si tão
diversas como o podem ser as suas pernas, agora, e nos tempos em que regressava
das matinés de cinema e ficava dançando no quarto, nua em frente do
espelho. Letras redondas ou bicudas, todas elas a sua caligrafia.
E a camélia dependurada no decote de um vestido que nem é de
veludo azul e nem é um vestido verde, mas tão só um vestido enfeitado com uma
flor semelhante multiplicada em infinito pelas leis da Física.
Nunca mais ela a recordara.
A flor de papel encerado multiplicando-se como numa sala de
espelhos de uma qualquer tenda de feira.
E ela que não entra na loja.
Ela e a camélia no decote do vestido verde.
Ela e a camélia no veludo azul do vestido de baile.
Ela e o mata-borrão e a mesa de pau-preto e os cadernos e as
letras que escreveu.
Ela e uma flor de laranjeira diluída na cor de um vestido de noiva.
Ela dizendo até um dia destes sem saber que era até para sempre.
Tudo muito antes de se lhe terem arredondado pernas e ancas, e as
maminhas, que lhe saem agora indiscretas de todos os decotes.
A ponta dianteira de um sapato envernizado, muito brilhante e
muito encarnado. Mil, duas mil biqueiras reflectidas. Maria Emília olha o bico
de sapato vermelho que não faz parte da história, mas está por acaso na montra
da loja onde irá entrar depois de um entretanto, menos que um segundo, mais
fugaz que um instante, em que olha, para além do vidro, uma camélia que decora
o vestido num manequim com olhos de safira.
Um passo, e o corpo de Maria Emília acciona o sensor, e o vidro
abre-se em duas metades. Ela a entrar na loja junto com um arrepio que é o de
sentir que a sua vida se cortou assim tal e qual. Um dia, a sua vida foi
cortada em duas, e uma delas ficou abandonada lá num lugar tão longe, num lugar
que não tem retorno.
Maria Emília ainda muito esbelta apesar dos anos, apesar dos
quilos, sobretudo na anca e na barriga da perna. E nas mamas.
Maria Emília em tarde de compras.
Maria Emília no interior da loja pisa, com o andar preciso do
tacão das botas, aquele desassossego que foi ela a olhar, através do vidro, a
camélia que enfeita um vestido na montra.
12 comentários:
Escritora, belo conto com uma excelente descrição.
Beijos
Quem sou eu para dizer que é magnífico este conto (não me atrevo a chamar-lhe post) ?
Apenas lhe digo que adorei é a minha primeira referência do ano.
Um abraço
Acabei de comprar o teu livro. Já é tarde mas amanhã vou começar a lê-lo, devagar, para o saborear.
Um abraço.
A tua Maria Emilia fez-me lembrar a toada deliciosa do Erico Veríssimo. Gostei mesmo,muito, muito!
Um beijo
Olha a tua Maria Emília é quase a Emília que tem uma nova loja de Gourmet em Lagos, "1000 Sabores".
Quando comecei a ler o texto, as primeiras palavras fizeram-me lembrar ela...
Ainda não li "As papoilas" mas tenho a certeza de que vou gostar.
Parabéns.
Armindo
Este conto não é dos meus preferidos de entre os que li teus, mas gostei.
Beijo.
Bom conto
Abraços d´ASSIMETRIA DO PERFEITO
Uma escrita exímia! Parabéns!
Mas que belíssimo texto! É simplesmente delicioso!
Beijinhos
Que dizer! A Emília dos tempos ,que se foram, porém a memória em palavras ritmadas ficou.
Parabéns!
Bj.
Meus parabéns! Gostei desse conto, bem escrito e cheio de sensibilidade.
Todos nós temos algum tipo de camélia esquecido (ou não) em algum canto da lembrança, não é mesmo?
Abraços!
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