Emídio, morreu.
“Deve ter tido uma dor a INUNDAR o peito”. “Uma dor enorme”. Assim falariam gentes sobre o caso. E diriam que Emídio perdera o rumo. Que um passo atrapalhara o outro. Que a VERTICAL deslizara sobre o piso. Diriam, assim, de como Emídio caíra num MOVIMENTO lento. Morto.
“Enfarte fulminante”, era a voz dos médicos numa CONVERSA mole em volta do corpo, passariam uns minutos das nove. Era já noite.
E tudo se passara em mais uma corrida de sábado. Corriam desde que Emídio tinha menos doze anos do que os quarenta e quatro que perfizera em Maio. Ele e Ubaldo. Corriam juntos desde há doze anos. Os dois, sempre, e alguns amigos.
“Um sábado igual aos outros”, diria Ubaldo, depois, quando lhe perguntassem como tinha sido. Eles iam à frente, Emídio ganhando, a uns escassos dois passos. Uns breves instantes, poucos, e poderia mudar quem seria o ganhador da noite. Sempre fora assim, desde há doze anos. Sábado atrás de sábado, Ubaldo dois passos atrás e Emídio na frente. Nunca mudara quem chegava primeiro Nesse sábado, tudo seria igual. Faltaria, apenas, a palmada no ombro:
- Porra, Ubaldo, ainda não foi desta!
E Emídio ria. Riam sempre os dois.
O amigo de infância, criado porta com porta, carteira de escola partilhada, da primeira à quarta. E o liceu que fizeram juntos, do primeiro ao sétimo. E a mesma faculdade ministrou o curso de um, e o curso do outro.
“O teu irmão de leite”, sempre ouvira sua mãe dizer. Ela que dera o peito que faltara à mãe do amigo. Emídio. Uma cara de anjo, apesar do moreno, quase negro, debaixo de um cabelo em forma de CASULO. Um cabelo negro, enorme. “Lindo homem se fará Emídio”, diria amiúde a mãe. E Ubaldo ouvindo. “Que tu também és lindo, Ubaldo!”, acrescentava ela.
Os dois sempre juntos. A primeira viagem a um PAÍS distante onde andaram em rios, num barco a VAPOR. O casamento num mesmo dia de sol. VARIÁVEL, apenas o local onde fizeram núpcias. No resto, nem um, nem o outro, podiam acusar-se de OSTRACISMO mútuo.
“Teu irmão de leite” dizia a mãe, cuidando que era um feito ter ele partilhado a sua mãe com outro. “Um INFERNO”, era o que sentia Ubaldo, andavam pelo liceu. Um irmão moreno e ele com a pele de um amarelo desbotado e o cabelo, oleoso. Um cabelo que lhe veio caindo até ser ele careca ainda nem completara os trinta e cinco. Tudo relevado, e a vida foi correndo. “Ubaldo e Emídio tão amigos!”, eram todos unânimes, dizendo, olhando.
Desde há doze anos, cada fim de tarde, já noite se é Inverno, a corrida de sábado. “Estava LUAR, recordas-te? Uma lua enorme. E tu viste a vizinha do lado a correr com o cão. Começaste a correr, para a imitar. Lembras-te, Ubaldo?” era o modo de recontar de Emídio. De ir dizendo como começou o hábito, quase vício, das corridas de sábado. “Tu galavas a tipa, heim, Ubaldo?!”, acrescentava Emídio. Ficara combinado, até hoje, como havia dito: “havemos de correr todos os sábados, à noite, de aqui em diante” e selaram com um forte abraço que todos sempre disseram: “tão amigos que são, nem que fossem irmãos”. E a mãe, se ouvia, lá ía explicando: “eles são, sim. São irmãos de leite e muito, muito amigos”.
Mais um sábado. Mais uma vez, Ubaldo saindo de casa com um desejo que o punha doido. “É hoje que o apanho. É hoje que lhe ganho”. Sábado a seguir a sábado, um mês, dois meses, um ano. Anos após anos, até ao dia de hoje.
Emídio gingando à frente. A meta a quase pouco. Uma mão sobre o peito, a boca num esgar que parece riso. Emídio deslizando no ar. Caindo, caindo.
Ubaldo, a menos de dois passos, respira compassado, a cabeça ocupada com o sonho. Ubaldo ultrapassando Emídio. Olhando-o de lado, a ver-lhe a pele morena coberta de gotículas de um suor de esforço. Ubaldo acordando de um grito sonhado. Simplesmente um “ganhei” que sobrava no quarto.
Ubaldo a dois passos do irmão de leite, o amigo de muitas corridas pela vida, sempre um passo à frente. Na passagem de classe. Nas décimas que acresceram um valor à nota de terminar o curso. No cargo da empresa que calhara a Emídio ser quadro superior e a Ubaldo chefe de repartição.
E a somar a isso, os sábados de corridas.
Tudo reviu Ubaldo naquele lapso de tempo em que Emídio caía, rolando. E Ubaldo olhando a araucária que sempre lhes servia de meta.
Só mais quatro passadas. Ele nem dava por nada.
Ubaldo contornou os pés do amigo, caído no passeio em que ainda há nada corria.
Ubaldo, sozinho, na frente. NEFELIBATA era como ele estava.
Tresloucado, gritando: “ganhei!” agarrado à árvore, abraçado ao sonho, atingindo a meta.
Ganhara, finalmente, ao seu irmão de leite।
participação no 5º JOGO DAS 12 PALAVRAS no EREMITÉRIO
7 comentários:
Aqui nasceu o Espaço que irá agitar as águas da Passividade Portuguesa...
As chamadas vitórias condenadas à eternidade!
E logo no dia dos meus anos! Não podia ser no dia anterior ou dois dias antes?! ;)
Excelente texto que gostei imenso de ler!
Um abraço carinhoso e continuação de óptimos textos!
Que me lembre, assim de repente, não conheço ninguém na blogosfera a escrever contos tão bons como os teus.
Este é mais um exemplo. Achei-o magnífico.
Saí do jogo das palavras pelas razões que conheces. Ridículas, aliás... De qualquer modo, acho que o jogo não constitui desafio significativo para quem participe com textos em prosa como o teu. O que não acontece com a poesia, cuja utilização das 12 palavras levanta sempre inúmeras dificuldades.
Visitei o site cujo link gentilmente me indicaste. Percebi a mecânica da coisa (acho que já por lá andei em tempos), mas não te vi...
Bom fim de semana, beijinhos.
Também eu me roo de inveja quando te leio...
Muito bom!
bjs
Escritora, maravilhoso conto, com a excelência a que já nos habituaste:)
Beijos
Gostei!
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