quarta-feira, 21 de maio de 2008

O Senhor Conselheiro

-Tenho muita pena

Palavras ditas do cimo do que eram três degraus.
No alcatrão um carro buzinou para dentro do silêncio que era ela inteira.

Maria Ema.
Silhueta debruada na luz de começo de noite, abraçava entre as mãos as pontas do casaco e uma mala. Figurinha magra, o vestido pendia sobre as botas rasas. Da boina, chegada sobre a testa, soltavam-se pontas lisas de um cabelo ruivo.

- Um cabelo tão vermelho deve ser único no mundo.
Dizia-lhe a mãe penteando-lhe duas tranças.

Maria Ema dissera:
- Sou a filha da Beatriz. Minha mãe morreu. Vim dizer-lhe, como ela me pediu.

Maria Ema engasgada em palavras. Palavras de silêncios antigos, atropelando as palavras ditas. Colando-se no céu-da-boca. Entaramelando-lhe a fala.

- Não esqueças de falar ao Senhor Conselheiro.

Assim sua mãe lhe viera pedindo. Assim sua mãe sempre o referira.

-Toma, Maria Ema. Oferta do Senhor Conselheiro.

A boneca que dizia palavras ou o cavalo de baloiço que mal cabia em casa. O quarto delas e a sala de fora.

A mãe muito arranjada revolteando vestidos em frente do espelho, os pés descalços na tapeçaria de veludo velho. Heranças parcas da tia Zulmira morta de uma obstrução. Maria Ema, criança, não entende o nome, e nem que seja ela morta de intestino ou artéria. Sabe que depois deste mistério de palavra, o pão que a tia cozia, e o azeite, faltaram lá em casa. Isso, Maria Ema sabe.
Ficava, às escondidas, a vê-la. Um afastar para onde nem a mãe lho dizia nem ela perguntava. O casaco comprido a cobrir um vestido, roçava os sapatos de saltos muito altos, vermelhos; tapava as meias de costura certinha sobre a curva torneada de cada perna.
Maria Ema esperava a noite toda. Assim o julgava. Esperava o beijo misturado no cheiro intenso vindo de um lugar silenciado. Lugar de vulnerabilidade, foi como o pensou, mas isso foi mais tarde. Pouco antes de agora que a ouve.

- Vai falar ao Senhor Conselheiro, Maria Ema. Peço-te.

Queria sua mãe dizer: depois. Mas calava o evidente. Calara sempre.

E tossia. Tossia havia muitos meses. Estava pele e osso. Nunca mais vestiu aqueles vestidos. Nunca mais saracoteou defronte do espelho.

Uma noite, e mais uma manhã e outra noite, foi o tempo que passou desde este querer dizer que o fosse avisar.

Depois.

Quando cobrisse o chão de uma massa mole que nem era vermelho, mas uma cor de dentro, um arroxeado, um quase negro. Uma cor de morte.

Que fosse ela, Maria Ema, dizer das quarenta e duas primaveras desfeitas antes de dois de Maio.

Era ainda Abril e era manhã cedo.
O orvalho cobria de frio a buganvília. Um frio fora de tempo.

-Tenho muita pena, repetiu o Conselheiro.

Maria Ema olhando-lhe o bigode de um ruivo quase vermelho. Duas metades de pelos retorcidos.
As mãos apertavam as pontas do casaco.

Maria Ema no degrau de pedra, dois degraus abaixo, a deixar que lhe crescesse o desprezo como um número elevado a enorme exponente.

E o Senhor Conselheiro repetindo:

-Tenho muita pena







texto de participação no jogo das 12 palavras

9 comentários:

Anónimo disse...

Os Senhores Conselheiros são assim, principalmente os de bigode ruivo!

Conceição Paulino disse...

Ell, ou...Seila (é assim k te conheço há anos, não é?)publiquei no Estranhos Dias - http://estranhosdias.blogspot.com/
mais alguns dos textos k escrevi a propósito do 2º Jogo das 12 Palavras, em boa hora lançado pelo amigo Eremita,e decidi, em cada jogo, para além do texto dele divulgar um de outra/o participante. Aleatóriamente ou não, porque me tocou particularemente - histórias de tantas vidas k cruzaram as nossas - esta tua bela narrativa também lá está. Obrigada é o k me resta dizer por partilhas como as k estão no Eremitério e, no caso em apreço, pela tua belíssima e bem escrita história.
bjs
Luz e paz

Mena G disse...

Já nem sei como te comentar, porque gosto sempre. Este texto, acho fantástico!
Mulher, pareces um dicionário de emoções!
:)

wind disse...

Escritora, mais uma excelente prosa:)
Beijos

wind disse...

Escritora, mais uma excelente prosa:)
Beijos

Heduardo Kiesse disse...

muiro bem querida amiga!! grande dose de palavras, mais uma!! que venha o livro :-)

"12 palavras"

gostei... :-)


PARADOXOS

Nilson Barcelli disse...

A tua participação, como não podia deixar de ser, foi excelente.
Parabéns.

Bfs, beijinhos.

Anónimo disse...

Olha linda, afinal não só és a mulher mais inteligente que eu conheço...como, também és uma ópptima escritora. Quem diria!!!!
Estou pasmada!!!
Beijinhos

Alberto Oliveira disse...

... o jogo das doze palavras ou o jogo da vida mal vivida?
Esses Conselheiros não dão conselhos à tropa fandanga: montam-se nela e para lavar a consciência oferecem-lhe cavalos de pau e bonecas que não se revoltam...


abraço ó mulher das letras dos fracos e oprimidos.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein