sábado, 29 de dezembro de 2007

tic-tic


Regressada de um dia.
Um dia mais.
O fim de tarde a desfazer os restos do dia. Devagar.
Uma tarde inteira que nunca mais se desfazia em fim de tarde.

Nunca mais a rua húmida.
E aquele ar misturado de água a escorrer pelas estantes, pelos dossiers espartilhados, empilhados.
Escorriam humidades por debaixo das secretárias.
A secretária dela. Horizontalidade adquirida por um pedaço de papel dobrado. Há meses.
Um quadrado de papel rasgado. Um de centenas de fotocópias. Um despersonalizado nos dois esses trocados pelo cê cedilhado, o acento agudo no local errado, o ene-á naquela palavra, trocado em á-ene.
Um papel rasgado sabe-se lá porquê, endireitando a secretária último grito de moda e do design.
Talvez apenas uma folha esquecida de ser papel de letras escritas, pelo borrão negro que esborratou na cópia. Um acontecido ao início do dia, mal ela chegou socando o chão com tic-tics de saltos finos de verniz negro. Sempre saltos finos. Sempre os tic-tics semelhando o som do tamborilar das unhas sobre os tampos, as capas dos dossiers de processos doentes de demorados. Sempre as unhas de vermelho sangue. Verniz imaculado.

E a humidade crescendo na tarde que subia pelo dia como a desfazer-lhe uma qualquer entranha que se fizesse quisto. Necessário cortar. A laser ou com bisturi. Arrancar aquele dia ao calendário pela tarde que o desfazia num final de dia.
Finalmente as sete. Apagarem-se luzes. Monitores cegos. Pastas em resma sobre secretátrias: plásticos coloridos como público a suspender-se na visão de uma faena. Silêncio entrecortado de Aonde vais? Até amanhã. Depois liga-me.
Nem eram frases, nem despedidas: ditos descuidosos de quem vai respirar o ar de perfumes muito caros, menos caros, ou de suados de corpos, descendo dos 10º, 3º, 12º, de todos os andares, nos elevadores.
Depois, abrir os pulmões ao oxigénio e aos óxidos de carbono. E ao ozono.
Mas respirar o ar não condicionado.
Ela e os demais, deixando aferrolhados escritórios e repartições.
Respirar o ar na rua.
O tic-tic dos sapatos no empedrado do passeio. Ziguezagues de tic-tics abrindo corredores por entre os corpos, e as portas do metro abrindo, fechando.
Ela a respirar o ar na cabeça rosada da senhora. A respirar a penugem branca muito antiga, muito velha e rala numa cabeça de loiça cor de rosa tal qual a boneca: aquela que lhe deram no sapatinho num Natal de há muito ano. Ela a respirar um odor a sabonete Lux.
Ao lado esquerdo, ela respiraria o bafo azedo do negro de camisolão com duas riscas horizontais em amarelo e verde.
Ela respirou em frente e saiu na paragem seguinte.
O tic-tic à saída do metro, ela não o ouve. Habituada dele que a desliza sobre a plataforma, que a conduz e ao casacão displicente cobrindo o vestido leve. (Fazia frio na rua, não lá dentro onde havia a secretária horizontalizada por um papel em quadrado).
Ela conduzida pelo tic-tic. Ela e as luvas, e a carteira dependurada no ombro, e a pasta de cabedal que lhe afaga a perna a cada balanço.
O tic- tic a subir os dois degraus do pátio de casa e a silenciar no enfiar da chave. A silenciar no plafe-plafe das meias de lã no soalho da sala, na tijoleira da cozinha, outra vez na madeira do quarto.
O som de uma guitarra a elevar-se do prato de um velho gira-discos.
Um tom abaixo da água do duche, um tom acima do estalar da madeira a arder na salamandra.
O gorgolejar quente do café com borras.
Finalmente sons que ela ouvia, ar que ela aspirava.
Devagar, sorvendo-os com o café fervendo.

Finalmente, o dia esventrado por um fim de tarde. Parida uma noite de sossego.

(Que dia é hoje? Perguntou-se, pensando. E sorriu-se respondendo: 31 de Dezembro!)

9 comentários:

wind disse...

Escritora, acabas genialmente bem este ano com esta profunda prosa!
Deliciosas as tuas palavras, sempre do teu jeito, a descrever lugares e sentires:)
Um Bom Ano;)
Beijos

Mateso disse...

Excelente, como sempre.
Um bom Ano de 2008.
Bj.

Mena G disse...

No próximo ano, sem dia marcado:
caminharemos, as duas, em separado;
na alameda do "plafe-plafe"...
nada de mãos dadas, mas com passo cadenciado! Uma marcha!
Contaremos ( de enumerar) os passos em tic-tic.
Altos, os passos. Altissimos. Muitos tic-tics.
Personalizados.
.................
Um café quente, a 11 de Janeiro.

Parvinha da Silva disse...

que dizer? deixas-me sempre extasiada.

Um Bom Ano (que seria perfeito num jantar no Gato Pardo)

Jorge Castro (OrCa) disse...

Um ano mais... ou menos, dependendo da perspectiva. Mas nada de mais-ou-menos! Um óptimo 2008 para ti, de felizes e alegres realizações, com um pé na vida e outro na poesia, ainda que tu a vistas de prosa, para enganar o frio do tempo.

Beijos.

Gi disse...

Dias que são sempre iguais? Em que só muda o tic-tic para toc-toc caso o tacão dos sapatos seja diferente?
Não sei se das atmosferas que criaste e que rodeiam o personagem, sente-se um "peso" nessa rotina (como são todas as rotinas) , engraçado como acaba com um sorriso! Há realmente quem se contente com muito pouco para se sentir feliz. O que conta é o estar. Não o ter.

Um beijo grande, um ANO NOVO em grande também. Obrigada por tudo.

Beijinhso. Muitos

Anónimo disse...

Gostei muito desse post e seu blog é muito interessante, vou passar por aqui sempre =) Depois dá uma passada lá no meu site, que é sobre o CresceNet, espero que goste. O endereço dele é http://www.provedorcrescenet.com . Um abraço.

Ana Paula Sena disse...

Um muito Feliz 2008! :)
Sempre com a tua excelente escrita!
Bjs

O caracol da Adelina disse...

M.Correia, estas palavras são para te dizer que a tua participação no 5 poetas de lagos vol.2, é brilhante. Simplesmente, gosto do que escrevres. Dos outros quatro autores o meu desapontamento.
Não estás no saco da crítica que faço no bloglagos.
Parabéns.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein