segunda-feira, 17 de setembro de 2007

mimos

Soube que a mãe viria era já muito tarde. Umas dez da noite. Tardíssimo para quem, como ele, se deita mal se amalham no poleiro, porcas e tontas, as galinhas empurrando-se de asa, deitam a baixo à esquerda e à direita e nem se seguram bem no poleiro. Um cenário tido por idílico para quem só o pensa e não viu, nem que sejam meia dúzia delas, ou mesmo menos, galinhas no poleiro descendo aos sonos. Aves que se deitam cedo e, sendo assim, como diz o povo, e bem: deitava-se com as galinhas, sim senhora!
Chegaria pois a mãe pelas seis da manhã na camioneta da carreira e, claro, pedia-lhe, num escusado perguntar que era um mando.
- Vais esperar a mãe, Fernando?!
Ele lá podia dizer-lhe que ao telefonema dela, estava tão dormido que cuidou ser hora de sair pelos campos antes de se fazer à estrada no Citroën desusado, e assim poderia lá estar acordado a uma hora, que de outro modo, lhe seria cómoda, agradável, usual? Dizer-lhe assim:
-Mãezinha, perdoa, mas acordado a esta hora, não vou poder estar na camioneta. Vem depois, na das oito, se fazes o favor.
Decerto vibrariam vozes sobrepostas:
- Não podes, Fernando?!! Na das oito não me dá jeito. Que coisa! Deitas-te depois, mais um bocado…
E o tom seria tão exclamado, tão ressoado no fone, que o seu único filho, nem ousava mais que dizer-lhe, para que ela nunca duvidasse que era esse o seu primo pensamento, o seu desejar ardente:
- Às seis em ponto, minha mãe, lá estou.
- Não te dormes, Fernando?! – insistia, duvidando. E numa simpatia, soltava:
- Perdoa, filho.
E ele que não, que não dormia. E despedindo-a, de leve:
- Até logo, mãezinha, a ver se ainda durmo.
Um cu de sono, este filho, pensava a mãe do lado de lá, não assim tão longe: uma centena e meia de quilómetros a que ele ficava da cidade.
E Fernando, depois de ouvir o clique do telefone desligado, berrava, quase alto que nem precisava gritar, mas apenas dizer de desconsolo:
-Porra! não podia ter vindo hoje, pela tarde, ou vir depois?!
E isto batendo, de leve, mas batendo, com o bocal do telefone na esquina da mesinha de cabeceira, tonto de sono, antes de lhe encontrar o correcto assento.
E adormeceu-se de luz brilhando pelo quarto. A luz do candeeiro.
E, num quase nada de relógio, estava acordado.
Ergueu-se espreguiçando o corpo nu que o meio de Outubro não se dava em frio. Fez isto, e só depois ouviu o galo cantando. Sabia que já esgravatavam, tontas, as suas galinhas, ao mal nascido dia. O Fernando tinha, sim senhora, um galinheiro com meia dúzia de poedeiras e um galo de crista encarnada, carnuda, retesada, e uns esporões que nem lhes digo nada. Eram, e mais o pedaço de horta e o pomar, a mira da mãe, a última desculpa que ela as não precisava para lhe entrar em casa por dá cá aquela palha ou por nem dá nada, como fora ainda nem havia um mês, que lhe enchera a cozinha de doces com as duas abóboras meninas, as únicas que medraram, e por via de transformar ovos em bolos, o deixara sem jantar de omeletas e estrelados, por uns belos dias, depois de regressar à cidade. Nunca levava nada.
- Não preciso. Como pouco. Levas depois para tua irmã.
Era sempre assim, a sua mãe que casara cedo e tivera oito filhos de uma assentada, o que é dizer cada ano uma, que foram sete filhas paridas de seguida e, muito depois, já entrada na casa nos enta, aquele filho macho. Um único rapaz .
- O pai ficou tão babado e surpreso que pediu licença sem vencimento por seis meses.
E ria-se, recordando.

Fernando, esqueceu o sono e o que lhe viria de transtornos e sorriu-se ao vê-la debruçada na porta da camioneta como se viera ela de atravessar a Terra para o ver, ali chegada, passados muitos anos. E nem era, que ainda nem havia um mês ali chegara na mesma camioneta só que a hora mais sensata. Ela, desgrenhada no cabelo ainda louro por debaixo dos brancos que nunca o pintara de outras cores, abanando a mão e, como se ele nem a visse:
- Fernando… – chamava-o gritando, se bem que não houvesse mais vivalma no largo.
Abraçou-a de abraço apertado. Um gosto tê-la ali era o que sempre sentia e nisso nem se percebia.
É certo que nesses dias podia dedicar-se por inteiro a ler ou fosse ao que fosse:
- Do resto trato eu.
Dizia-lhe sempre a mãe.
E o resto era tudo o que havia em casa e nos arredores que até pelo quarto lhe entraria se não lhe tivesse dito, com ar que a fez criar um beicinho no rosto encarquilhado, mas fresco num retardar de juventude:
- Aqui não meta o bedelho que eu zango-me consigo, ouviu?!
Tinha ela feito oitenta e três anos. Já ía nos noventa e tantos nessa manhã em que, mal colocou o pé na entrada da casa, lhe disse, debruçada sobre um dos muitos sacos:
- Olha o que te trago…
E abria sacos e malas que trazia na bagageira de cada camioneta, muito bem arrumados pela filha mais velha. A única que vivia na cidade. Viúva como ela. As outras nem que estavam por perto. Longe, por outros países. Essas ela raramente visitava, a não ser por via do nascer de um neto, mas desde há muitos anos que isso não se dava e ainda mais porque ela dizia serem os netos uns chatos, mal educados nessas cidades sem quintais nem gatos.
-Não tenho paciência para aqueles netos, é verdade! Uns meninos que acham que caca de burro mete nojo e ficam com pieira se vêem um gato a vinte metros!
E afirmava-o sem mágoa que ela criara os oito filhos sem criadas.
- Ajudas, apenas a Maria Emília que lá ía pelas tardes dar uns pontos e mais qualquer coisa que fosse mais preciso; de resto, criei os oito sozinha. A bem dizer, que o pai andava sempre longe por esses orientes tratando de obras gigantes.

Nesse dia nada foi diferente: a camisola feita com duas agulhas que ele sempre vestiria nas noites frias; a colcha de trapos, uma delícia para o corpo sentado nas leituras pelas tardes frias de Dezembro. E hoje ela trazia como um troféu, aquele desenho:
- Encontrei entre os papéis do teu pai. Lembras-te? Devias ter seis anos. Já desenhavas bem.

O dia foi passando depois de um caldo de feijão que só ela fazia.
Quando se deu a hora de apanhar os ovos dos ninhos espalhados um pouco a eito pelo galinhedo, Fernando não a ouviu. Distraído, como costume, pensava ele. Mas admirou-se de ter sentido o não a ouvir e levantou-se do sofá de flores.
Estava na varanda sentada na cadeira de baloiço. Viu-a de costas. Pensou chamá-la ou voltar à sua leitura, mas deu a volta e olhou-a de frente.
Tinha a faca de ripar o feijão verde, muito apertada na mão. Apertada demais, cuidou ele, e chamou:
- Mãezinha…
Chamou já pressentindo que eram surpresas diferentes as que a espantavam nos olhos verdes com que ela se deixou surpreender a vida toda.
Beijou-a. O seu Fernando. E desceu-lhe, num mimo, as duas pálpebras
.

9 comentários:

PostScriptum disse...

Que me fasciono? - fascino.
beijos, mc.

Fay van Gelder disse...

Com escreves bem:)

Bjo e tem uma Super semana :)

Sissi disse...

Lindo, e eu mais uma vez sem palavras
Beijo

wind disse...

Escritora, uma magnífica "estória", onde mostras a tua versatilidade.
Nesta sente-se tanta ternura:)))
Beijos

Gi disse...

2ª via - a 1ª disse não ser possível atender o meu pedido. Até parecia uma máquina multibanco em manutenção.

E agora? Agora não consigo repetir o que tinha posto :(

Dizia eu que duas gotinhas de água teimavam em bailar nuns cantinhos que eu cá sei. Não são de tristeza, não. São de ternura. Da tua escrita e da que escorre das personagens que criaste. Eu sei que é chavão mas é assim que eu sinto "Mãe, é mãe".

Gostava eu de ter fechado uns olhos igualmente verdes dessa maneira mas não deixaram. Uma mágoa que conservo.

Um beijo (daqueles)

Anónimo disse...

Gostei!

Mateso disse...

"O menino de sua mãe "ou a mãe de seu menino?
Que importa.. tanta ternura nas palavras semeadas. Para quê mais dizer?
Beijo.

vida de vidro disse...

Uma doçura triste e serena. Lê-se e há uma lágrima teimosa... mas calma. Gostei tanto! **

Alberto Oliveira disse...

... claro que a menina sabe como enredar os leitores nas malhas que tece nas suas histórias feitas de quotidianos comuns a todos nós... mortais. Porque sei isso, não me apanha desprevenido (leia-se emocionado). Mas que as relata (as histórias) com as cores vivas da realidade, isso é verdade....

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein