Estavam quatro mulheres sentadas.
Um espaço amplo coberto por um pano, assim como se fossem muitos metros de tecido de lençol barato, pano cru ou semelhante, mas muito branco, envolvia as quatros mulheres por todos os lados.
No que se olhava, e eu olhava-as de longe, via-se que elas se vestiam com tecidos presos sem preceito. Não eram saias e nem blusas ou casacos ou sequer xailes. Eram panos de muitas cores drapeados a eito, nos ombros, em volta do pescoço, nas ancas, em redor dos seios.
Tinham elas a tez de cores diversas: cor de leite, ou achocolatada, preta. Uma delas tinha uns olhos que pareciam duas amêndoas e os olhos variavam também na cor que os havia esmeralda e castanhos e azuis do mar em tempestade.
Sentadas ou semi estendidas naquele branco e que seria fofo que mesmo de longe se adivinhava, elas conversavam com gestos de mãos, desenhando as palavras numa brisa leve que soprava apenas por dentro dos panos que abanavam.
De onde em quando, um pano deslaçava-se mostrando o que tapava.
As mãos que conversavam faziam meigos os dedos de um a outo corpo em afagos nos cabelos, nos braços, nos bicos dos seios. Nas coxas que eram de umas largas e noutras estreitas e magras.
E as bocas que falavam em palavras sussurradas, abriam-se em carinhos aninhados no detrás de uma orelha, na beira escondida de uma perna, sob um pano brincando de vergonha.
Colhiam novidades daquela que esperava, o ventre inchado, que se fizessem as luas que faltavam.
Numa prega do largo e branco pano, longe que mal os divisava, embascado delas é certo, corria uma criançada. Digo assim porque nem era um rancho, mas tantas. Muitas e de cores de pele tão diferentes de uma a outra que se não fora eu saber que os estava a ver ali naquele espaço confinado aos panos brancos, diria que estava vendo os vários países, regiões e continentes.
Brincavam de balões e arco, deitavam papagaios, jogavam ao pião, ao berlinde à apanhada. Um grupo jogava com um ringue.
Caíu a noite e o pano branco brilhou de luz que quase eu me cegava.
E a ceia fez-se. Frutos variados. Sugavam a manga amarela, debicavam dos cachos a uva verde e, vermelha e derramada, como se fossem sangues, caía-lhe sobre o ventre e os seios, o suco da melancia em talhadas.
Vi que numa delas, havia sobre a pele de um seio branco, descoberto, mesmo junto ao bico relaxado e quieto, umas bagas redondas de papaia. E em outra, dependurada na rosada boca , uma semente muito negra de anona.
E a luz que havia deu num amarelo, num destom, que logo se ficou em negro. Uma noite sem lua e nem estrelas.
E isto foi assim que elas se deixaram de ali a não sei onde.
Fiquei eu vendo, como se fora sonho, cidades e aldeias e carros e pontes e arranha céus e casebres miserados de gentes e casas fumegantes de bombas rebentadas há instantes.
E dores. Eu sentia dores e nem eram minhas.
Um preso, um doente, um torturado, um aguardando a morte.
Uma velhinha morrendo sem neto e sem palavra que a encomendasse.
Doía-me e tanto.
Esquecia o pano branco e as quatro mulheres e as crianças de todas as cores e o ventre inchado que esperava as luas.
Quase.
Que em noites, cada local diferentes no rodar do Sol ou que seja de Terra dá no mesmo, vi as mulheres e nem eram quatro, mas muitas, todas e de todas as cores e belezas e credos.
E vi que eram senhoras e mulheres da vida assim chamadas e pastoras de rebanhos vários e doutoras e ignorantes e ignoradas.
Vi-as a todas em casas atapetadas e noutras em ruínas, num qualquer buraco que parecesse casa, debaixo da carcaça de um barco, ao céu de um Agosto quente na duna de uma praia, na Paz ou entre troar de aviões e bombas.
Elas, cada uma, puxando à palavra do corpo, o homem, o amante.
Elas fazendo do mundo um pano branco com frutas e falas e gestos e afagos.
E muitas, tantas crianças brincando de muito brincar, como se por exemplo, ao pião e ao arco.
9 comentários:
devari, pouco e mal mas vou ouvindo, si senhora. e obdecerei tb assim q a vida dêxar. bj
Escritora, sublime prosa.
Desde a maneira de escrever, a visualização e os sentires que nos passas, tudo é perfeito, neste caso, belamente triste.
Sei que me repito, mas não sou escritora como tu e não sei inventar e jogar com as palavras:)
beijos
Primeiros:
Estou em dívida?! A vizinha não me diga que já não se lembra que lhe paguei os 2,30 E. (dois euros e trinta cêntimos) que lhe pedi emprestados para beber a bejeca no concerto do Tony Carreira? Paguei-os sim senhor, fez ontem quinta-feira e até lhe dei quatro notas de cem escudos e seis moedas trocadinhas de um escudo, ora essa!
Segundos:
Gostei muito da história, embora no princípio tivesse torcido o nariz àquela cena de "Estavam quatro mulheres sentadas... ". Felizmente que a seguir não apareceu escrito "e quatro homens de pé". Que isso era descriminação ao género masculino...
E também nós inicialmente observamos com curiosidade as harmonias daquele grupo e seguimos as brincadeiras das crianças e depois estremecemos e angustiamo-nos com uma dor que não é nossa, julgamos, é das outras e dos outros, mas que afinal é também nossa, já que nós também sentimos a violência e às vezes só não nos juntamos aos gritos delas (e deles) porque tentamos acreditar quando nos afirmam que não temos nada com isso. Só mais tarde percebemos que as lágrimas delas são as nossas e que o medo delas...também somos nós.
Como gostei de ler este teu quadro pintado de luz e cores sobre pano branco...
o quarto do filho...
para leres
beijo
Sabes que quando leio os quadros vão-se compondo à minha frente. Uns imagino-os , outros vão desfilando à minha frente vindos dos meus arquivo de memória e dos milhares de imagens que vou guardando neles. Ao ler esta tua história de imediato associei a um pintor que num mpassado muito recente esteve no meu blog - Siegfried Zademack - as tuas mulheres, a lua e o panos brancos deram vida aqueles quadros minha mente. Ficaram mais ricos. Assim como eu depois de te ler.
Um beijinho, bom domingo, um bom tudo :)
Serão mulheres em branco ou fruta escorrendo em palavras de sumo doce?
Fico na dúvida, apenas uma certeza , que cabaz de palavras em paleta de cores e cadência!
Parabéns.
Bj.
não sei interpretar sonhos. até acho que os devemos deixar sossegados, a sonhar.
;p
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