quinta-feira, 12 de abril de 2007

vizinha

Porquê? Porque me fez dela ouvinte?! Qual ouvinte! Eu sou é sua confessora! Pensará ela, que por ter eu marido falecido e a cama livre, a posso ficar ouvindo?! Estou farta! Tenho que lhe dizer. Direi assim:
- Isabel Maria, desculpe, mas…
Arvorarei um tom simpático. E serei rápida ou ela perceberá o meu enfado que esperta lá isso é ela. E lá terei que ouvir-lhe, em ar melado:
- Oh! Margarida, desculpe minha querida…
Aquele tom oleado do “minha querida”! Que repugnante!
E se lhe der eu tempo, ela irá dizendo:
- Eu esqueço-me que tem a sua vida, mas sabe é que eu estou a passar uma fase…
E eu tentando dizer-lhe, já sem modos:
- Por amor de deus, Isabel Maria! Estou farta dos teus pindéricos choradinhos que parece, a quem a ouve, que a vida é um inferno e tudo lhe corre mal!
Ai como gostaria de a enfrentar e ver a cara dela especada à minha frente.
Ai que raiva que se me coloca só de a pensar de nariz arrebitado meio choroso, a melena, entalada em dois ganchos,a cheirar a laca de supermercado, e o fiozinho de baba disfarçado na mão que desenha um arco sobre a boca pintada de um vermelho esborratado.
E os olhos! Os olhos que nem sei se são castanhos ou cor de mel ou pretos porque estão sempre semicerrados entre dois papos sombreados de verde e torneados, em cima e em baixo, por dois riscos negros.
Vou dizer-lhe, de modo suave:
- Margarida, escute…
Não. Não direi nada. Simplesmente não vou estar para ela. Não permitirei outro encontro. Digo que tenho que fazer.
Faço-o já hoje. Daqui a bocado, quando ela acabar o jantar. Quando ela vier tocar com dois dedos na porta que tenho sempre no trinco.
Estarei sentada, lendo.
Ou terei o telefone colado no ouvido.
Direi com ar convicto:
-Isabel Maria, esta noite não posso ficar à conversa!
Ai como ela vai gostar deste à conversa!
Delicadeza minha que eu não converso nada. É ela quem fala, fala, conta, reconta, critica, pergunta-se e responde-se. Não fala de mais ninguém nem de outro tema que não sejam as filhas. Nem no marido fala.
E eu, Margarida, sua vizinha, estou farta! Fartinha!
Sei que se retirará, que ela é educada. Chata, mas educada. Cuido que não deixará de dizer em voz sumida:
- Se soubesse o que ela me fez hoje!...
Dirá, com os pronomes ela e me, sobressaindo da frase por uma conjunção especial de timbres, referindo-se à filha mais nova que a esta hora deve estar sentada entre os dois, pai e mãe, na mesa da sala de jantar. A mesa com um tampo de vidro que deixa ver, por debaixo, as cabeças unidas de dois enormes peixes numa imitação grosseira de granito. Na cabeceira, por sua indicação, está sentado o marido de camisa e colete e com a gravata posta tal qual entrou em casa vindo da repartição de finanças onde trabalha.
A filha mais velha ficaria formando o quadrado, mas há muito ano que ali não se senta. Pirou-se de casa mal ganhou uns cobres. Está para França desde muito moça.
- Sabe o meu desgosto, Margarida!
Diz-me vezes sem conta desde que me mudei, já lá vão dois anos, para a casa térrea com jardim na frente e um quintal grande a toda a volta. Casa que comprei para fugir do bulício da grande cidade.
Casa sem mais vizinhos que os que moram na casa de barras amarelas situada a não mais que duzentos metros da minha, do outro lado de um caminho empedrado que foi, há muitos anos, o acesso principal entre o lugarejo e a Vila o que faz que haja, um quilómetro abaixo, mas não aqui, aonde hoje moro, algumas casas bordejando-o de um e outro lado.
A casa de barras amarelas é onde mora a Isabel Maria, nos seus cinquenta anos, seca de carnes, reformada de Chefe de Secretaria da Escola da Vila onde trabalhou desde os dezoito anos. A Isabel Maria que, num modo quase ingénuo, mas nem por isso menos feio, aproveita cada deixa sua, para me ir recordando:
- A Margarida não sabe avaliar os trabalhos e os desgostos que nos dão os filhos!
E quem a ouve até pensa que a filha é a adolescente que partiu de casa, quando afinal já passou há uns anos dos trinta. E tem um bom emprego e uma boa vida lá por terras de França, como Isabel Maria, ela mesma, conta.
- Nunca mais cá veio! Convidou a irmã para a ir visitar, mas a mim nem nada disse. É este desgosto que ninguém mo tira, Margarida. Que mal fiz eu àquela rapariga?!
E chora e eu estou farta! Fartinha de a ouvir enredada naquela ladainha.

Olha, bateram. Uma pancada e logo três seguidas em repenicado.
- Entre, Isabel Maria. Entre.

Ela aí vem, caminhando em passinhos miúdos empurrando a saia que desliza sobre o cano da bota rasa. Ela aí vem com as mangas da camisola caindo sobre a bandeja tapada com um pano branco que ela bordou com cerejinhas e quase brilha de alvo.
- Trouxe umas broas que fiz esta tarde.
Anuncia já entrando na sala onde coloquei o livro sobre a mesa de camilha e estou cruzando a perna esquerda sobre a direita em jeito de quem aguarda.
E ouço-me dizer como se fora eu uma outra Margarida quem fala:
- Tenho o chá pronto, Isabel Maria, sente-se.

E aqui estou, deslizando sobre a mesa, colheres, duas canecas, um açucareiro. E vou afastar o livro com a marca de interrompido nas primeiras vinte páginas, para colocar no espaço que ele deixa, sobre a toalha de rendados,a chaleira de chá de príncipe com umas folhinhas de menta…

9 comentários:

Anónimo disse...

Tão boa é a Isabel Maria como é a corna da vizinha. Eu, realmente, não compreendo essa gente que fala muito e que se queixa... ;)

éf disse...

Eu aceitava-lhe as broas e depois dava-lhe uma seca sobre os "Prolegómenos a toda a Metafísica Futura" que nem a deixava abrir pio. Repetia diariamente até que me desamparasse a loja.

aquilária disse...

há pessoas especializadas em fazer de outros repositórios do seu desfiar de lamúrias.entram na nossa vida, sobrecarregam-nos simpaticamente com todo o seu peso e depois vão embora, elas sim mais leves, até uma próxima vez.

mas o que eu quero mesmo dizer é o prazer que sinto, em ler o que aqui escreves. obrigada.

Nilson Barcelli disse...

Ler-te é uma delícia.
Magnífico...!
Bfs, beijos.

eu disse...

Foi muito bom ler-te, quem não tem, não teve uma vizinha asssim?
detesto que me chamem de querida, e de pessoas que em vez de seguirem em frente a sua constante é lamentarem-se.
Um excelente retrato da vida.

Gi disse...

Dizer sim é fácil, difícil mesmo é conseguir dizer não. Somos nós os principais responsáveis por aquilo que nos acontece, traçamos o nosso destino. Com medo de magoar, de ofender, de dizer basta vamos engolindo sapos até um dia eles se soltarem ou morrerem definitivamente de nós. Não deixes que isso aconteça, sobretudo com pessoas que falam muito mas não para serem ouvidas. Só gostam mesmo é de se ouvir. Elas são o centro do mundo e todos devem girar à usa volta, pequenos astros sem valor que ilumina com a sua presença. Quem dizia que o sol quando nasce é para todos? Que tal cada um de nós ser um pequeno sol?

beijos

Zé do Telhado disse...

Regressei após um longo período sabático. Faça o favor de vir à minha "casinha" fazer-me uma visita que a sua presença é sempre bué de agradável.
Aquele @bração do
Zecatelhado

vida de vidro disse...

Continuas a ter o poder de me deixar grudada no ecrã , a ler o que escreves. A vida dança nos teus dedos. Excelente. **

wind disse...

Escritora adorei! Excelente descrição de tudo:)
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein