sábado, 3 de fevereiro de 2007

dois palhaços


Levavas pela mão a tenda dos milagres e dentro dois palhaços assomavam nas gretas roçando os panos mal cosidos. Rumavas ao poente sem que soubesses razões. Vinhas de onde se chamava o sol nascente, a barraca atada atrás do corpo como se tu mesma foras o circo desarmado. Rumavas no sentido do sol posto, sem crer que fosse aí melhor que andares de sul a norte ou seu oposto. Os palhaços ajeitavam-se para dormir num frenesim de buscar posição no apertado espaço entre lantejoulas e cordas e resmas dos papéis que sempre pelas noites escrevias. Tu, seguias de cabeça hirta, os olhos pestanejantes e deslizando órbitas de aqui a ali, quase se te pedindo que rodassem em mais amplo que o humano ângulo. Arrastavas a comprida saia de folhos que eram sempre saias de muitos folhos que vestias debaixo de túnicas ou casacos que te indefeniam de formas. Puxavas a tenda rota num estrado assente nas quatro rodas que roubaras numa eira perdida no teu tempo. Quando era um lugarejo, paravas. Que não paravas em cidades nem vilas, que não te vissem as gentes antes de montada a tenda como assim chamavas ao pano que estendias numa calçada ou, mais de costume, numa terra solta, não raro, numa papa que a chuva transformara. Ficava-te o chão demarcado num rectângulo. Dispunhas adereços, uma mala pintada de luas e estrelas e, sentados num dos cantos do teu quadrado espaço, os dois palhaços. Sentavas-te no meio, despontava o sol por sobre oliveiras, na linha inclinada de uma serrania, na planura em socalco de videiras. E cantavas. Era na tua voz que se fazia o chamamento aos que nem te viram que passavas na noite que dormiam. Cantavas músicas suaves em letras de histórias que assim de um local a outro iam. Cantavas o que em outro distante ouviras. Histórias tristes. A mãe que degolou de fome a própria filha, o pai no desemprego afogado no poço. E a cabra que virara gente e o pai morto que aparecia à cabeceira da doente filha. Cantavas histórias dos caminhos que de um lado ao outro percorrias. Assomavam nas portas os pequenos, primeiros assistentes teus, seguidos nos olhares atentos de mãe. E tu cantando. Juntava-se, pouco a pouco, o lugarejo, os animais e seus donos esquecidos dos trabalhos. No fim do que mostravas, ofertavam-te. Pão, umas cebolas, favas se era tempo, um coiro de presunto, umas batatas.
Partias pela tardinha, os panos embrulhando a magia que deras num baralho velho, nas vozes dos palhaços birrando nas tuas mãos que o peito te doía às vezes nas falas diversas que fazias neles. Seguias para mais poente atrás de sois vermelhos derramados em céus de serra brava de coiotes e de cães de guarda, ou, se dava,fulgindo em águas de um mar que sempre te assustava .
Havia raros dias, mas acontecia que te afastavam. Até te apedrejarem fizeram os meninos para quem inventaras os palhaços.
Se chovia ou nevava em demais que dois dias, paravas num telheiro, pedias que te alojassem. Dormias com as vacas, no seu quente.
(Era quando sonhavas com a casa grande sobre a praia e um mar em ondas e os barcos e, de saias muito largas, sentadas na areia, mulheres. Esse era contado que nunca cantavas. Praia e mar onde os teus andares não te levavam.)




imagem neste local de magia

5 comentários:

Gi disse...

Minha querida Seilá, magia é o que escreves. teno muito prazer em ler-te boa hora em que te descobri.
Bom fim de semana

Alberto Oliveira disse...

atrás do circo da vida
há uma história bem diferente
é uma vida tão escondida
que nem a imagina a gente.


Legível.

Óptimo domingo!

jorge esteves disse...

Mais do que dois palhaços errantes (errantes dedos meus que até aqui chegaram), desdobrei da memória os saltibancos de esteira, cão e sacola que à mingua das moedas dividiam a côdea enquanto caminhavam para nenhures...
Afectuosamente

Nilson Barcelli disse...

Um texto lindo e mágico. Não é fácil de ler (li-o 2 vezes...) porque o sentido das frases nem sempre é o que parece. Ou então sou eu que ainda estou a dormir (já vou tomar o meu cafezinho...) e teimo em ler as entrelinhas...
Gostei muito. É uma prosa que por vezes é poesia e tem a tua marca.
Beijos.

wind disse...

Escritora está belo e muito profundo este conto. As tuas palavras são tão tristes no conto, como aquilo que o conto é.
Olha não me sei explicar melhor, não sou escritora, desculpa.
beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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