domingo, 28 de janeiro de 2007

esperança

Acordava sem gosto. A língua a pedir um copo de um líquido doce, um copo de água com açúcar que fosse, um chá. Custava-lhe andar da cama ao resto da casa. Arrastava-se. Doía-lhe, não o corpo mas, aquilo a que se costuma chamar de alma. Um desencontro matinal entre o viver e o seu eu, explicava ela, depois, quando já tinha dissolvido algum daquele quase fel que de manhã trazia, numa malga de leite com flocos, numa chávena de chá de tília e, muitas vezes, numas duas torradas cobertas de doce de tomate, de maçã ou de qualquer um outro que sempre em casa os tinha. Fazia um café bem forte e bebia numa caneca de loiça sem asa, mas nem assim o acordar lhe acontecia. Dissolver os amargos matinais, recompor-se com a vida que lhe puxava pela borda da roupa de dormir, levava o seu tempo, tinha os seus rituais. E ela não saltava os itens que esse chegar ao estado de viver lhe pedia. Sentava-se na cadeira da cozinha meio entornada sobre o que degustava, o cabelo caindo em fitas sobre a caneca ou a torrada, as bordas da cadeira, apenas esses bocaditos do tampo, ocupadas pelo que era o seu ainda adormecido corpo. Às vezes, colocava um livro sobre a mesa e as páginas iam-se abrindo a dedo sujo em mel ou doce de amora e a história que lia de olhos semicerrados, mais fazia o acordar demorado. Quando o passo seguinte acontecia e se esgueirava na quentura do duche, mesmo nesse momento, ainda aquele mal-estar lhe embrutecia o ser e em vez de cantar ou sorrir, ou se sentir lavada na mão que o corpo lhe percorria, ela planava numa, dizemos, de preguiça, numa melancolia. Era assim todos os dias. Era assim desde há tantos dias. Desde quando houvera um tempo em que lhe apetecia, mal via o sol, ou ainda este se preparava para acontecer em dia. Desgastara-se, cria, nos pulos que fizera sobre o soalho em camisa ou mesmo sem roupa de uma noite acontecida nua, descendo numa corrida sobre o lá fora onde sempre os cheiros lhe eram fonte de vida. Pensava isso, assim, debaixo do duche que corria lânguido, demorado, morno, mal aquecendo o corpo. Uma tristeza, um amargo na boca, um silêncio num sítio de si para o qual nunca achara nome. A água corria no corpo nu e o perfume do sabonete cheirava-lhe a coisa nenhuma. A roupa pendurada nas costas de uma cadeira ou espalhada no chão do quarto, repetida de dia em dia, salvo sempre renovada a peça que ainda se exigia de lavada. Vestia-se devagar, ainda morna, uma perna atrás da outra no vestir da cueca perfumada de engomares. Depois vestia a camisola em cima das maminhas e de umas calças de lã castanhas sobrava perna para verem-se as meias de riscas fazendo argolas em verdes, e amarelos. Se fazia mais frio, abafava-se com o casaco de malha que tricotara ainda lhe sabiam os Invernos a mar e a neve quando caía, não lhe gelava em ela, mas apenas nos canos da cozinha.
Eram, normalmente, quase duas da tarde quando se aprazia de se dizer em vida. No Inverno, nos meses curtos de Janeiro e Dezembro, acontecia-lhe ter como dia de sol umas escassas horas. À luz que sobejava, enchia de cores folhas de cadernos. A boca e os cabelos ficavam, tantas vezes, salpicados de encarnados, de roxos e de verdes. Pintava Primaveras em viços de folhas e flores de muitas cores. Pintava azuis de mares do Sul onde um dia vivera. Pintava flores e mar e verdes e colinas e bem no meio pintava sempre uma menina.

Sabia que mal chegasse a Primavera e esvoaçassem na rua as andorinhas, sairia da cama num salto e mudaria de fato em cada dia e o sabonete lhe cheiraria a alfazema e nas torradas poria queijo fresco salpicado de sementes bebendo junto um iogurte fresco.
Sabia estas coisas e a elas, simples saberes, sorria, ficando-lhe a mão de pincel esvoando num gesto sem tino.
Estava esperando, assim parecia, que chegasse Abril.

7 comentários:

Alberto Oliveira disse...

... mas abril está aí não tarda! que o calendário já corre mais depressa que eu. Parece que foi ontem o natal e já estamos quase dentro de fevereiro e depois março nem se dá por ele...

Por estas e por outras é que para o ano ingresso na universidade; da terceira idade...


abraço.

Gi disse...

Gostei de a ler. Sinceramente.
Tenha o resto de um dia pintado com as cores do arco-íris.
Bj.

sotavento disse...

Leio-te mas nem sempre te digo... hoje foi dia!... :)

wind disse...

Escritora, magnífico conto!
Como sempre vais aos pormenores e entra-se dentro da personagem, é incrível!:)
beijos

Anónimo disse...

Mulher, linda, amiga
Compila os textos e deixa-me publicar-te. Faz-me esse gosto...

Beijo grande de flores e Abril

liliana miranda disse...

Lindo..lindo.. belíssimo!
beijos

peciscas disse...

O que é bom é saber que, mais tarde ou mais cedo, Abril acaba sempre por chegar.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein