sábado, 18 de novembro de 2006

Pãezinhos com geleia


Fiquei doente. Os dentes caíram. Os de cima. Caíram um a um como tijolos sem argamassa entre eles. Caíram simplesmente. De um dia ao outro e fiquei de boca encarquilhada e eu nos trinta e poucos. Passou-se andávamos por Novembro. Fazia um calor de Estio. Nas ruas, nos largos, nas casas, abafava-se ainda em restos de um Agosto já distante. E eu adoecendo. Não me doía nada. Apenas me sentia fraco. Comia bem e com vontade. Comia daquele pão que tu fazias. Uns pãezinhos redondos com sementes por cima. Eram feitos quando chegavas da rua. Espalhavas farinha na pedra. Juntavas água, acho que ovo e amassavas. Sei que apareciam feitos ainda eu tinha na vista o branco e no nariz o pó da farinha. Eram molinhos e traziam um doce de ameixa que fizeras em altura própria e mantinhas em frascos alinhados por cima da bancada na cozinha. E eu doente. Deslavado. Comendo os pães com três ou quatro dentes que me sobravam. Todos na mandíbula de baixo. Nenhum em cima. Tu vestias uma blusa em decote redondo. Quase sempre. Blusa justa e muito curta. Via-te a carne em torno da cintura em cada movimento. Bronzeada dos banhos de um sol que ainda não terminara nesse Verão que se enfiara por Novembro. O mesmo bronzeado que me dava ainda um ar mais ou menos decente. Depois, agora, a cor acobreou. Diria que estou mais para o cinzento. Mas em Novembro é que foi quando eu adoeci. No Novembro de um Verão em que um a um me caíram os dentes, eu comia bem. Comia mesmo sem os dentes. E estava bronzeado. E via o teu seio saindo da blusa de decote redondo enquanto me servias pãezinhos quentes com geleia. Os teus seios magros pareciam dois pãezinhos dos que tu fazias. E depois choveu como devia. No quintal, nasceram flores de Inverno e a terra ganhou aquele odor a vida. Numa tarde em que brilhara um sol entre dois aguaceiros, senti frio. Chegaste envolta numa nuvem de arrepios sorridentes anunciando: arrefeceu, tardava. Colocaste um casaco de malha sobre o decote redondo e deixei de ver o rebordo da cintura quando te abaixavas. E chegou Dezembro. Estou doente. Caiu-me muito cabelo. Não me dói nada, mas sinto-me muito fraco e nem o doce de geleia me apetece. Parece-me que deixaste de fazer os pães. Nunca mais vi enfarinhado o negro desalinhado dos teus longos cabelos Amanhã vou-te pedir que me deixes ficar em casa. Vou dizer-te que quero aqui ficar olhando as flores no quintal, brincando com o cão, lendo. Não quero que me caia nem mais um cabelo. Não quero que a geleia que tu fazes me saiba a pasta de dentes. Quero sorrir contigo ao frio deste Dezembro e ver a chuva e cheirar o mar em sueste. Quero que me faças pãezinhos quentes para eu comer mesmo sem dentes.

7 comentários:

wind disse...

Escritora, mais um conto de arrepiar.
Descreveste uma doença e seu tratamento sem escrever sobre isso.
És fantástica!
Os pormenores do "monólogo" estão fenomenais.
Parabéns e que raio onde andam os editores que não te lêem?:)))
beijos

Anónimo disse...

Eu já vi isto acontecer a duas pessoas da minha família... Uma delas tinha apenas 34 anos. Tenho tantas saudades dela...

Anónimo disse...

PS: Mudei de link... (mas já não mudo mais)

Anónimo disse...

cá estou.

fep - escrita iberica

Anónimo disse...

...impressivo. A tua capacidade de engendrar cenários interiores é remarcável.

Anónimo disse...

Um conto tão doce...
Abraço apertado para ti

Alberto Oliveira disse...

... pãezinhos com geleia numa história de amor e dor. Gostei muito do modo como levaste a massa ao forno que imagino ser de lenha e nem abusaste no fermento! Parabéns!

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein