sábado, 9 de setembro de 2006

amigo

Ele olhou-a quando ela levantou a ponta da saia e nela escorregou a pele da face. O verde da saia, escurecera e ele viu-a largá-lo sobre o pé meio descalço. Olhou-a quando ela subiu o peito largo nas duas mãos e o corpo magro estremeceu,o queixo erguido no gesto que sentia erótico, que a fazia sorrir. Acompanhou-lhe o gesto de dobrar-se para a frente num U desfeito como se apenas quisesse, com cada um daqueles gestos, repor-se ela à luz de uma qualquer imagem. Seguiu com atenção o sacudir para trás da cabeça descobrindo um pescoço muito branco e muito tenso nos anéis desenhados sob a pele fina. Ele sabia que o cabelo cairia solto em caracóis vermelhos se não estivesse a esta altura, cortado muito rente, apenas uma ponta parecendo esquecida numa trança fina que caía tocando a hortelã num odor que o fazia espirrar.
Deslocou-se lento da margem do ribeiro e espreguiçou-se.
Ficaram sentados lado a lado, ela entrelaçando com os braços nús as pernas dobradas, o queixo assente nos joelhos magros, tudo envolvido no tecido fino da saia rodada e verde. Muito quieto, ele ficava olhando algum ponto ou apenas à espera que ela se soltasse da costumada preguiça de depois do passeio matinal e regressasse até onde ficaria horas e horas sem nada lhe dizer, escrevendo, escrevendo. Um dia,ele gostaria de saber o que tanto ela escrevia. Finalmente, a saia estremeceu erguendo uma figura de pouco mais de metro e meio salpicada de simpáticas sardas cor-de-rosa.
Caminharam por um carreiro de areia sombreado de loendros, ibiscos e um ou outro medronheiro. Coisas que ela se entretivera a plantar numa época que lhe parecia muito distante. Naquela época, dizia ela quando, raras vezes, se referia ao tempo em que o cabelo avermelhara mais que o normal e crescera sem que o sentisse, como crescia o mato naquele carreiro e em volta da casa, florido, apesar de tudo, na Primavera em que decidira que chega que a vida tem que continuar. A mesma época em que percebera que naquele mato poderiam crescer outras flores e dar-lhe a si outros frutos.
Caminharam lado a lado até que a subida os separou. Ele galgando-a numa corrida lesta e ela, passada larga e respirando fundo até ao cimo, que a meia dúzia de cigarros de cada dia, não permitiam grandes fôlegos.
Esperou-a abanando a cauda felpuda num cumprimento e numa ovação.
Tinham completado o ritual das manhãs. De todas as manhãs, mesmo naquelas em que o ribeiro galgava as margens frágeis prenhe de águas chovidas na noite, ou quando o céu se pendurava como um pano de coador derramando água e sombra sobre o amanhecer.
Nessas manhãs de chuva, ela calçava botas, umas enormes e negras botas de borracha, enterrava na cabeça um chapéu de oleado e cobria-se com um casacão castanho de cabedal partido. O ritual diferia no banho nua na ribeira que se trocava pelo chapinhar nas poças, ou, muitas vezes, um deixar-se caminhar no corpo revolto das águas por entre pequenos troncos e uma ou outra, sempre demais dizia ela, embalagem de bebida. Voltavam tiritando, ela roborizada do frio como o ficava do calor, sempre aquelas rosetas avermelhadas pintando-lhe cada face quando vencia a ladeira, fizesse frio ou calma. Nesses dias, acocoravam-se na lareira até saberem que era noite apesar de a luz do dia nunca ter realmente aparecido.
Ela escrevia, escrevia e ele volteava em torno da casa apenas para lhe ser simpático e logo voltava a anichar-se ao seu lado e isto também nas tardes estendidas de Verão quando ela se adormecia na rede pendurada entre a alfarrobeira e a figueira velha ou, quando se sentava na cadeira de verga com muitas almofadas sem cor, e escrevia numa mesa que cheirava aos pinheiros por detrás da casa e tudo isto sob a sombra densa das buganvílias amarela, branca e vermelha.
Hoje, ela limpara o rosto na saia verde e ele sabia que ela limpara umas tantas lágrimas de recordar aquela época. Ela lho dissera um pouco antes do passeio com as mãos entranhadas no pelo junto às orelhas dele, a cara a tocar-lhe o focinho, e isto queria sempre dizer que ela estava recordando. Isso, e o ter-lhe chamado amigo em vez do nome que o dono, muito antes daquela época lhe dera. Fiel, o nome que era o que ele mais tinha de cão.



8 comentários:

wind disse...

Escritora, já nem comento o que escreves, só escrevo que de facto os fiéis e amigos são só eles , os que se chamam fiéis. Não nos traem, não nos deixam, podemos confiar, estão sempre connosco podemos acarinhá-los que não nos rejeitam:)
beijos

Armando disse...

Voltei um destes dias e oxalá seja para durar desta vez...Raios!! Sempre fora e dentro... Gostei de cá ter vindo pois era impensavel não vir cá... e como sempre ... virei frequentemente...fica a promessa e honra-la-ei!! Para começar..gostei deste post e como gosto de ler posts enormes, deixa ver lá o que mais escreveste tu....

Anónimo disse...

Lamento não entar na onda dos comentários anteriores. Aliás nem isso esperarias, ou não me tivesses iso bater à porta. O post está muito bem escrito, claro, mas o tema...
Cá p'ra mim fiel amigo é o bacalhau em qualquer uma das mil e uma maneiras de o levar para a mesa.
E isto enquanto os "amigos dos animais" não nos obrigarem e comer batatas cozidas sem o dito cujo e fritas sem a bifalhada da ordem, tirada do lombo do um outro qualquer melhor amigo do Homem.
Tchhhhhhhh... é que nem peixinho, nem ovinhos, nem leitinho nos deixam morfar, se alguma vez forem mais que uma minoria de iluminados e vierem um dia a mandar em nós outros.
Que perspectiva mais negra, carago!
Vou ter pesadelos esta noite...

Clarissa disse...

Depois do seu comentário lá pelos Instantes passei por aqui e tive uma grata surpresa... gosto da sua forma de escrever. De certa forma até concordo com o drzeco, relativamente ao facto de a temática poder ser algo corriqueira... porém a forma como está escrito agradou-me bastante.
A verdade é que quem escreve sabe que nem sempre as ideias são fantásticas ,mas a sua sua expressão escrita pode, ainda assim,sê-lo.
Um abraço.

Clarissa disse...

Tive que voltar para agradecer o link que agora aqui vi :)
Um abraço :)

Alberto Oliveira disse...

Fiel seria o canídeo, disso nem sequer posso ter grandes dúvidas. Mas bisbilhoteiro também não deixava de ser; pois então "gostaria saber um dia o que a jovem da saia verde escrevia". Mas o que é que ele tinha a ver com isso?! E se fossem assuntos confidenciais, ahm?!


Por acaso tenho um gato que quase considero da família. Mas pensas que eu lhe falo das minhas intimidades? Isso é que era bom! Para o gajo vir cá para fora para a vizinhança miar...

Nilson Barcelli disse...

Mais um belíssimo conto. E não estou a dizer isto para te ser simpático, se não gostasse dizia...
Até meio enganaste-me, pois pensava que era outra pessoa a companhia dela...
Beijinhos.

augustoM disse...

Elogiar o que é realmente bom, só faz sentido quando o bom não é constante, por isso, fico-me por aqui fazendo uma festa ao cão.
Um baraço. Augusto

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein