quinta-feira, 31 de agosto de 2006

a minha paixão pelas cidades

A minha paixão pelas cidades fica-me nos recantos. Nos arredondos de passeios e escadas; nos esgarçados de tábuas nas janelas sombreadas de renda ou de vaso em flor, ou de gato. Fica-me essa paixão ternurenta, no verniz decapado de unha de mulher em chinela espapaçada ao sol; no voltear de arrufo da mãe fechando a porta a duas voltas e gritando agora não; no rapazito em andados de acrobata no varadim da esplanada, um varandim de antanho debruado a pedras preciosas; no cão que pede com os olhos enquanto o dono toca num fole desdentado; no homem que campeia carruagens em lenga-lenga rouca, vendo-nos como sombras que lhe somos.
A minha paixão é acalentada na toada suave da guitarra afagada numa esquina de rua. Uma paixão que é, não sei se já o disse, condimentada pelos redondos do chão onde me sento olhando o rio, porque as minhas cidades têm sempre um rio, correndo, as mais das vezes, apertado em esquinas de prédios.
Cresce a minha paixão no passear meus olhos em águas furtadas que, como rolas, me miram do alto; no aspirar fruta bichada a cheirar a maçã, a tangerina espalhada em caixas no passeio de troca.
Fica-me a paixão marcada a ferro em brasa, nos torsos desfraldados como bandeiras no cimo dos futuros edifícios ou no casaco em hora do almoço num dia de Verão, bamboleado no dedo que desapertou a gravata.
E a paixão se extasia e sofre e quase chora, nas mulheres de muita vida, deambulando nos bancos das leitarias que já são só cafés ou espreitando atrás de sardinheiras secas.
E outros, muitos mais, acrescem neste fazer da paixão.
As caras e sapatos de cansaços nos metros de muitas linhas.
Os seios secos amamentando sob a toada de pés cegos.
O banco de jardim dormindo a sono solto.
A minha paixão pelas cidades, só depois, só muito depois destes, se acresce dos apreços de que a cidade grande se empinoca e faz gala e oferece.

Pablo Picasso Mujer en camisa

(na exposição Picasso tradição e vanguarda)

8 comentários:

wind disse...

Que Grande Escritora que és!
Descreveste a cidade da minha infância, agora não é mais assim.
Enquanto te lia, "entrei" nos lugares e estive com quem e onde descrevias.
És genial!Obrigada por maisesta "viagem":)
beijos

Anónimo disse...

Maravilhoso, como sempre. Eu adoro as cidades, a noite das cidades, as luzes dos carros, dos sinais dos táxis por cima dos ditos, os semáforos, os combóios, os autocarros, os metros... Às vezes tenho saudades de tudo isso.

Licínia Quitério disse...

Mais um belíssimo texto. Com o ritmo próprio, a casar com o da cidade que vais fazendo desfilar. Um "travelling" de um filme a sépia, com algumas pinceladas garridas. Bonito, bonito...

Anónimo disse...

E foi este lindíssimo texto o responsável por aquele que escrevi sobre a minha cidade. Obrigada :-)
Beijo

sotavento disse...

Hum... bem me parecia que era paixão, essa coisa que tu tens com as cidades!... :)

Alberto Oliveira disse...

A minha paixão pelas cidades, é igual à tua paixão pelas cidades! Finalmente -após sucessivos desencontros opinativos há algo que nos une!!
Já vou passar um domingo mais descansado*.


Se pensas que estou a gozar, tira daí o cavalinho; que eu sou muito sério quando não me rio... Tejo.

Óptimo domingo!

augustoM disse...

Se fossemos todos iguais a vida não tinha graça. Eu não gosto da cidade, para mim é como um museu.
Vê-se, digere-se, e tudo termina na porta. Onde eu gostava de viver, se fosse possível, era à beira mar. Com rochas ou areia, não importa, desde que sinta a brisa e o cheiro do mar, quando olho para ele.
Um abraço. Augusto

Sonia Almeida disse...

Gosto da cidade que descreves, tão parecida e tão diferente da minha. :)
beijinhos com saudades

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein