sábado, 8 de julho de 2006

feitios

- Entenda, homem! Comigo só este modo de expressar. Um contar curto, um retrato estilizado, diria até uma pincelada. Assim um gestualismo escrito. Entende-me? Nada de humor, nem uma brincadeira, uma fina ironia. Uma abordagem sempre do ângulo triste.
- Mas não dramatiza, ou ao menos não escorrem sangue ou baldes de lágrimas as suas, ditas, pinceladas. É sóbria a sua escrita.
- Se ao amigo acha, eu assim o desejo. O que lá está cada um que se lhe veja e sinta. O que eu gostava, amigo Duarte – ai como eu gostava! - era que ao ler uma, uma que fosse, página minha, me desfizesse eu de rir. E isso, amigo, nunca me aconteceu. Diga-me, de tudo o que de meu punho leu, quantas gargalhadas lhe ficou a dever? Ao menos um sorriso?! Vê?! Nada.
- Ora, Quaresma, cada um é para o que nasce; eu, mal pego em material de escrita, acabo sempre em alguma mordedura que antes me apetecia o tom cordato e sério do amigo. Seja real ou fantasia, vai-me sempre o dizer para o caricato. Quer ver o último?
Debruçados sobre o tampo de pedra, debaixo da densa folhagem da latada onde os frutos se confundiam ainda com os verdes das parras, a voz de Duarte soou traduzindo os grafismos na folha do caderno de argolas.

Dezoito horas. Aproxima-se do cais o barco das 17.30. O Barreiro foi deixado há quase meia hora. Na varanda da ré nem um passageiro. Chove torrencialmente, mas o rio vai sereno e o barco segue o seu rumo sem balanços extras. Na primeira classe não há um lugar vago. No bar, nem ao balcão se consegue um espaço para pedir um bolo de arroz. Sentadas num recanto, as duas jovens que diariamente fazem a travessia a esta hora, estão ensimesmadas numa longa conversa que já desenrolavam no passadiço quando as vi entrar. Estão ambas de casacão de cabedal e cachecol de lã de cores garridas. Não fumam. Nunca fumam mesmo na ré onde ainda é permitido. Uma delas levanta os olhos e percebo que me reconhece de nos vermos ali em cada fim de tarde. Fico olhando a sala em volta. Um negro muito alto, todo vestido de branco com uma capa de oleado vermelha e um colar doirado no pescoço. Uma mulher enfezada com menos de trinta anos, mas aparentado muito mais, carregando uma criança, grande demais para ela, embrulhada num xaile azul-escuro. Duas senhoras que se querem muito bem trajadas tentam manter-se desviadas de um grupo de homens que bebe cerveja pelo gargalo. Sorriem quando um deles solicita licença para se levantar, e continuam de sorriso pendurado enquanto o homem passa por sobre as pernas muito juntas de cada uma delas. Encostam-se no canto que sobrou e ficam de olhar no infinito. Não se conhecem e não lhes fica o à vontade para a conversa de circunstância. O resto é gente indiferenciada que cabeceia o cansaço do dia em cochilares diversos, ensaia uma leitura em jornal de dois dias, abraça o saco sobre o colo com um olhar distante de quem ainda tem muito dia para andar. Gentes. O barco segue. Olho por uma janela com o vidro recentemente limpo de vapor por uma qualquer mão, e não vejo mais que cinzento. Nem rio, nem céu, nem chuva, apenas uma pasta parda. O roncar do motor faz-se notar por um brusco mudar de tom. As pessoas começam a levantar-se, a dirigir-se para os locais de saída. As jovens amigas do canto continuam sentadas e a conversar. O barco solavanca, uma, duas vezes, parece que tacteia o local de atracar. Do piso de baixo, junto à saída, sobe o sururu das vozes num quase ruído. As duas raparigas levantam-se e, um por um, vão-se levantando, e encaminhando para a saída, os restantes passageiros que ainda estão no bar. Sigo-os. Equilibro-me na escada ao último estertor do barco. Mal coloco, atabalhoados, os pés no piso de saída, vejo uma das raparigas cair no pontão, os livros espalhados, os passageiros contornando, na pressa, evitando-se cair. A amiga, tentando erguê-la, e caindo de cara na chapa molhada. O negro da capa vermelha tentando ajudar, e o marinheiro a interpor-se.
Antes que ele actue, eu puxo da máquina e fotografo. No ecrã da pequena digital sobressai-me um duplo colorido. Apontando para o céu sob a água da chuva, o fio dental de cada uma das amigas. Um tudo-nada de vermelho debaixo do cabedal de cada casaco. Um extra que fica só meu .
Dois a três disparos, e já o ecrã me fornece uma mole de gente. Preciso olhar sobre o visor para as ver, muito abraçadas, compondo os cachecóis e rindo.
Sorrio e guardo a máquina no bolso.

-Pois, Duarte pode crer que seria pouco provável eu me pender o final para esse lado. As meninas que caem, a pegar-lhes como personagens, seriam talvez duas raparigas vendendo os corpos para estudar. Creia, Duarte, que a pensar numa cuequinha encarnada, nunca ela seria assim tratada. Feitios, amigo Duarte. Feitios. Comigo, quem teria caído seria a criança da tal mulher do bar...
Riram-se e pediram mais duas cervejas.
-Preta para mim. Imperial nunca que para pressão basta-me a que os sapatos me fazem nos joanetes.
Isto disse Quaresma, rindo.


Autor: Tiny Bob ( tiny )

14 comentários:

wind disse...

És genial escritora!
Que mais posso escrever sem me repetir?
Sempre a surpreender-me quando penso que já li o teu melhor , o conto seguinte ainda supera o anterior em tudo!:)
Está na hora de ver isso em livro:-)
beijos

ND disse...

Ao começar a leitura, achei que no primeiro parágrafo estava a ler uma auto-crítica-literário-biográfica.:)
Chegada à máquina digital, esta pareceu-me extemporânea ao modo discursivo dos dois homens, pelo que devo ter entrado mal no tempo do texto.
A história suposta risível não encontrou em mim o leitor modelo. Quase me apetecia dizer que gostaria de ter lido a versão do Quaresma (fosse – mesmo! -a criança a cair no rio) porque esse sim, ao contrário dos atributos da sua escrita (os que refere), pareceu-me mais dotado de sentido de humor do que o Duarte.

no geral, já li coisas bem melhores, escritas por ti.

ND disse...

ah! não te inibas de mandar parar com os comentários! :D

eduardo disse...

Hallo! Grub dich!

Alberto Oliveira disse...

... por mim, o final seria mais para a confusão latina. Depois das jovens cairem, cairia também -sobre elas e casualmente, o marinheiro. Instalada a referida confusão, seria lícito supor, que os restantes passageiros também cairiam todos, uns por cima dos outros, formando uma enorme pirâmide humana. Uma vez que o conto de Quaresma indicia passar-se no Inverno (porque não Dezembro?) restaria iluminar a tal pirâmide da base ao topo e a estação Sul e Sueste teria a sua árvore de Natal sem mais despesas. Mas tu sabes como eu sou para os finais...

boa semana!

Anónimo disse...

Excelente!

Lmatta disse...

Estas cada vez melhos menina
Bravo
gostei
beijos

augustoM disse...

É tudo uma questão de feitio, e como cada um tem direito ao seu, o texto será o que o seu feitio mandar. Gostei, do final e tudo.
Um abraço. Augusto

lique disse...

Pois! São mesmo feitios. ;) Mas sabes que cada um escreve conforme sente. Acho eu...
Beijão

BlueShell disse...

Saudades: imensas!
Tempo: quase nulo!

Beijos: muitos
BShell –
0o0o00o0o0o

José Leite disse...

Isto é uma escritora em embrião?

Que o embrião não aborte são os meus votos sinceros!

A "coisa" promete!!!

CINCO ESTRELAS!!!!!

mjm disse...

:-)
Aqui, ri com tudo, até com os comentários!
Que grande 'enredista'! (isto diz-se?)
--
pena estar sem gás, q este dava para tertúlia ;-)

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

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adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein