terça-feira, 14 de março de 2006

O pano

Eu corria. Corria num caminho de pedra larga. A lua estava em minguante. Dava uma luz miúda que mal iluminava. O caminho onde eu corria, podia ser uma velha estrada romana, não fora tão, muito inclinado. Corro desenfreada a caminho de alguma coisa que nem sei se sei. Sei-o agora que vos conto. Posso dizer que andava buscando um pedaço de renda, um quase xaile que perdera. No fim da descida, já noite cerrada, estava eu no largo da aldeia onde um pelourinho altivo anunciava que os homens têm corpos e podem deles fazer local de sua justiça ou vingança em vez de, como eu gostava, fazer deles locais de amor. Procurando o xaile de renda, eu precisava reencontrar a casa da festa onde, pensava, o deixara. E no largo não havia aquela casa. A casa que eu me lembrava que tinha uma rosácea por cima do portal de acesso ao jardim e uma buganvília amarela a enrolar-se por cima das janelas mais afastadas da entrada. Era uma casa baixa pintada de branco no rodapé e, daí para cima, toda de granito em cinzento e negro com uns brilhos que se faziam, imagino eu, mesmo com a luz da lua. Não, claro, nessa noite com a lua em minguante. Agora, estava eu parada olhando cada casa e, em pensamento, abanava a cabeça dizendo: não, não é nenhuma dessas; onde vou procurar? Estava cansada, mas bem disposta, ali sozinha, enquanto a aldeia dormia. Ergui-me devagar e fui andando por uma viela escura. Ao fundo, vislumbrava uma luz azulada. Uma luz que não era de lua, nem de vela, nem de electricidade. Parecia-me mais um fogo-fátuo. Tremeliquei das pernas e lá fui. No fim da rua estreita e sombria que eu percorrera de lés a lés, só havia um campo de trigo todo salpicado a malmequeres. Esfreguei os olhos para ver melhor à luz daquele quarto minguante e lá estava a luz azul iluminando o meu xaile de renda estendido sobre as espigas ondulantes.
Puxei o pedaço de renda e enrolei-me nele. Fui saltitando sobre os malmequeres e as espigas. Parecia, até, que tinha asas.


Foto de Jan Bengtsson


O pano de renda escorregou-me das costas e eu fiquei nua.
A meu lado, tu dormias. Demorei um largo segundo a perceber que fora o nosso lençol que escorregara.

11 comentários:

riacho disse...

É muito BOM quando o sonho nos dá asas.
E foi lindo poder entrar também no teu sonho, nem que tenha sido por breves segundos. :-)

wind disse...

Espectacular final e foto! Escreves muito bem, repito-o as vezes que forem precisas:) beijos

Alberto Oliveira disse...

Agora seria a altura azada para a revanche e eu escreveria mais ou menos o que se segue:

Com que então eu é que dou a "volta" às histórias finalizando-as de um modo abrupto e nada consentâneo com a leitura sequencial que estamos a fazer e levando o pessoal ao "engano"...

Mas o comentário que te deixo, de facto, só pode ser este:

Não descreveste um sonho; contaste até onde as asas da imaginação te levaram. Com um pedaço de renda, ou um lençol pouco importa; que as histórias não terminam nas últimas palavras de um texto...
Parabéns.

Nia disse...

...e ao acordar, era real o teu sonho.Quantas vezes um lençol,quando lhe chamamos o "nosso" lençol é o nosso sonho de acordar?Olha lá em volta.Não há seara madura nos cabelos dele?E luas no seu olhar?Diz-lhe e acorda-o...Vais ver que o olhar também pode ter pedaços de luz de Lua.Diz-lhe.Acorda-o...quem sabe poderás caminhar-voando por cima dessa cama -seara?!

lique disse...

Toda a atmosfera do sonho, a dormir ou acordada. E que lindo sonho... :)
Beijão

Nilson Barcelli disse...

Acho que é um sonho/conto muito bem elaborado. Gostei de o ler e gostei do final (é de mestre...).
Beijinhos.

Nilson Barcelli disse...

Escreves muito bem os contos.
Este não foge à regra, e fazes uma descrição tal que se vê os locais que imaginaste, mesmo com a lua em minguante.
Logo no início, onde dizes "não fora tão", aparentemente faltam palavras. Será que as comeste...? Mas não retira nada do que disse acima.
Beijinhos.

Alberto Oliveira disse...

Tu não me digas que continuas a sonhar com panos, lençóis & atoalhados?!

Ó mulher acorda que está um lindo dia de chuva!

(Com que então uma visitinha da Niazinha Gaiteira que não se deixa ver de qualquer maneira... )

M.P. disse...

Olá! Venho aqui pedir que te dirijas ao Catedral e que tentes convencer aquele Mouro safado a mudar de atitude! OBRIGADA! **

Rui disse...

Fizeste-me sorrir. Obrigado.

agua_quente disse...

Que sonho lindo! Pôs-me a alma leve nesta manhã de sábado.
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein