sábado, 11 de março de 2006

Escaravelho

Nos quase sessenta anos de vida, não pertencera a um clube, não participara em associações ou cooperativas. No liceu e depois na faculdade, não tinha um grupo de amigos tão usual nos adolescentes e jovens. Não, nunca andava sozinho, pelo contrário, sempre bem acompanhado, quer no masculino, quer no feminino. Apenas não pertencia a um grupo implicando isso que jantava, ia ao cinema e quase namorava em conjunto. Com ele, as coisas não funcionavam assim. Muitos viam-no como um misantropo, outros como um fóbico e mesmo tomado de alguma forma de esquizofrenia. No entanto, pela vida fora, fora encontrando vantagens para essa independência que tornou calculada, um quase fanatismo de poder levantar-se da cadeira do café às horas que entendesse, ver o futebol sozinho no sofá com uma boa garrafa de vinho, cabecear no transporte ou no cinema sem levar uma cotovelada de cada um dos lados. E dormir. Dormir, ressonando. Dormir a noite toda deitado no tapete da sala. Esta condição, nem ele sabia, se a ela se rendera, se a ela se habituara ou se, antes, fora paulatina e estudiosamente por ele construída. Certo é que o encontramos reformado de um cargo de chefia numa empresa de produção e comercialização de vernizes. Chama-se Samuel Guinoto e apresenta no bilhete de identidade a designação de solteiro no estado civil. Engenheiro Químico, Samuel só foi tratado pelo primeiro nome, que se lembre e lembra-se mal, pela mãe que faleceu andava ele pela 3ª classe, pelo avô com quem ficou vivendo, e por Mariana, a criada. Logo pelos seus doze anos, morto o avô, passa a ser o Guinoto. Vive em casa da tia Matilde. Nem por Gui foi tratado que a tia detestava diminutivos e nem a prima Alexandrina podia ser tratada por Alex e menos ainda, a prima mais velha que tinha um buço preto e dava pelo nome de Vanilda. E, como neste, em muitos nomes, caía bem um diminutivo.
O engenheiro Guinoto nunca escreve, ou mesmo fala, sobre temas sócio-políticos ou económicos. Também nunca o viram tomar partido numa discussão de religião.
O engenheiro Guinoto é um coleccionador. Estava-lhe no sangue, trazer para casa pequenos objectos que, pouco a pouco se transformavam numa colecção. Fora assim quando uma Tamilda lhe dormira em casa durante quinze dias. Nunca lhe acontecera tanto tempo e Guinoto receava pela sua independência. Uma semana depois, já Guinoto ouvia a voz de tenor da mulher troando pela casa: “Não vens para cama, amor?” e ele refastelado em frente da TV reconfortado seu corpo naquele corpo febril que ele não ia em meias tintas. Mas gritarem-lhe assim! Tamilda saiu e deixou para Guinoto, além de um enorme alívio, uma travessinha de tartaruga imitada, caída no tapete da casa de banho. Hoje, ele tem uma colecção de travessas trazidas de vários países, por ele ou pelos amigos a quem mostra cada nova colecção.
Tem muitas colecções espalhadas pela enorme vivenda que mandou construir nos terrenos que eram do avô, ali para os lados de Palmela. Esquece umas. Recomeça outras.
Envernizadas, de tamanhos variados, de origens variadas, o engenheiro Samuel Guinoto tem a maior colecção mundial de bolas de escaravelho*.


*Escaravelho; Besouro-do-esterco
Quando os sábios do antigo Egipto viam o besouro-do-esterco fazendo rolar uma grande bola de lama ou esterco, imaginavam-se admirando a criação simbólica da Terra. A cabeça do besouro, com sua coroa franjada, significa o Sol e seus raios; a bola de esterco era a Terra girando no espaço. Assim, essa espécie de besouro tornou-se um símbolo sagrado, usado em arquitectura e joalharia. Outras espécies de escaravelho ou besouro-do-esterco são encontradas praticamente em todos os lugares. A bola que eles fazem rolar, de excremento de animais, principalmente de cavalos, pode ter até 4 cm de diâmetro. Quando terminam de preparar a bola, enterram-na em uma toca subterrânea, a fim de alimentar-se em paz. Na época de reprodução, macho e fêmea juntos fazem uma bola em forma de pêra. Nela, a fêmea deposita os ovos e, assim, as larvas ao nascer encontram o alimento esperando por elas. Há mais de 20 mil espécies de escaravelhos no mundo. Um grupo aparentado com eles, os fitófagos, alimenta-se de vegetais.
Lúcia Helena Salvetti De CiccoDiretora de Conteúdo e Editora Chefe
imagem e texto em SAUDEANIMAL






4 comentários:

Alberto Oliveira disse...

Este Samuel Guinoto! para o que lhe havia de dar... Coleccionar bolas de escaravelho não está mal pensado, não senhor... Olha se fossem bolas de futebol...

Par os lados de Palmela?! Acho que já ouvi falar neste gajo. Os químicos deram-lhe cabo da tola, foi o que foi, de tal modo que já confunde bolas de escaravelho com bolas de cão. E enverniza-as... Há cada maluco! Quem se safou a tempo foi a Tamilda; imagine-se o trabalho da mulher a limpar o pó aos cagalhotos!!

lique disse...

É, eu sempre disse que os engenheiros químicos são esquisitos...:) Ainda pensei que o homem coleccionasse os bichinhos, eles próprios, que também os há muito diversos, agora as bolas envernizadas, tendo em atenção o meterial de que são feitas, enfim... :))
Pronto, acho que se eu fosse a Tamilda, talvez lhe deixasse alguma travessa mas em pedaços, tás a ver?
Beijão

wind disse...

Prosa extraordinária:) beijos

Alberto Oliveira disse...

...ah! ainda estás às voltas com os escaravelhos. Ok! Em garoto perdia?! imenso tempo a olhar o labor das formigas, daqueles animaizinhos que se lhe déssemos um toque encolhiam-se como uma bola, e das lagartas das couves. Era um puto assaz curioso com os bichinhos e inventava para os meus irmãos histórias que giravam à volta dos mesmos.

As cobras e as borboletas nunca fizeram o meu género.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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meu honroso quarto lugar

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