sexta-feira, 27 de maio de 2005

Um ele

Calorava na carruagem . Separadas por cada vida, gentes entravam. Buscava cada uma seu lugar longe da outra. Havia, naquela hora da tarde, muito espaço. Poucas gentes muito longes de um a outro banco. Tu na janela. O queixo na mão. Pensavas. Não muito pensando. Um laivo de pensar, rasando o olhar nas gentes, uma a uma, entrando na carruagem. No relógio enorme os ponteiros faziam um ângulo agudo. O sol batia no das horas. Ofuscava-te. Eram trinta depois das cinco. De apressado passo, a figura destacava no vir de lá do fundo. Não entrou na porta. Surgiu no meio de todas as gentes andando rápido, o sobretudo esvoando de sobre o fato. Uma barba entre o branco e o amarelo palha. Olhaste o que podias no ápice que se fez dele a esgueirar seu ir na extremidade oposta à que surgira. Ficou-te um interrogar de condição a dele. Ficou-te um a pensar que era figura de excentricidade. Não mais. Um tudo-nada além do cada um que buscava, longe de cada outro, sentar na carruagem. Solavancou de leve o corpo todo como de todos, cada um sentando sua vida no ir ou, como tu, no voltar.
E de repente. Muito de repente, tu ficaste no susto. Um gritar. Parecia que tinha começado sessão de teatro. A voz apregoando. Ele de passo tão estudado, entrando do oposto lado em que há pouco se fora de teu pensar. Um passo bem diverso como dançando. As mãos segurando coloridos venderes. A voz apregoando como quem conta história. Nem que nada mais tu vias que a excentricidade consumada. Não. Aquele teatrar vivido incomodou-te. O real de um ele a entrar em cena a cada ir da carruagem. Sim. Confirma. O teu imaginar espezinhado. Vidas no comboio.
Distraíste. Olhaste firmemente a paisagem.

20 comentários:

Anónimo disse...

"... Pensavas. Não muito pensando. Um laivo de pensar, rasando olhar das gentes, uma a uma entrando na carruagem...". Um texto admirável!

Quem (d)escreve assim é uma grande escritora. E tu sabes que não sou pessoa de dar "graxa". Beijos

gato_escaldado disse...

texto sublime. adorei. beijo

M.P. disse...

Mas que maravilha de texto, seila! Hoje, para além do BOM fim de semana que te desejo, vim requisitar-te para ires até ao meu blog para tentar responder à pergunta que lá tenho!É apenas uma "vingançazita" prometida que me dá muito gozo pôr em execução! Tu verás... Desde já um obrigada e desculpa esta convicatória! ;)**

wind disse...

Grande prosa a que já nos habituaste, mais uma excelente história. beijos

Jorge Castro (OrCa) disse...

Era eu e talvez o outro de mim ou, então, nenhum... Apenas esta vontade de vir aqui bater à porta, olá e um beijo, rápido, que o comboio está de partida. Lembrarmo-nos de alguém, com um sorriso, é uma coisa boa de viver. Deixa-me, então, entregar-te uma rosa (com terra e vaso, que não gosto de oferecer coisas mortas...), pelo ano que passou, por já termos trocado alguns viveres, por ser sempre bom ler-te quando por aqui passo. Por mim, também, que é bom saber que existes.
Beijos.

Português desiludido disse...

Gostei! E quantas vezes não somos "espectadores dos teatros da vida"...

agua_quente disse...

Estas tuas estórias de contar a vida, momentos do quotidiano que agarras e nos dás assim, maravilham-me sempre. Fantástico. Beijos

Anónimo disse...

Olá marafada! hoje vim visitar-te!

Anónimo disse...

Olá, mulher! Estou de volta e, acredites ou não, foste a primeira pessoa que vim visitar. Já tinha lido o texto, claro. E já me tinha deliciado com ele. Como sempre. Um beijão

Ana Russo disse...

Miguinha, tenho um desafio para ti... uma foto... para onde envio ???? tens o meu mail no meu blog, caso não queiras deixar aqui o teu contacto. Beijo. Penelope

Anónimo disse...

Gostei muito do post, simplesmente maravilhoso

Anónimo disse...

Desculpa a demora. Podes crer que nunca esqueço. Beijinho. Tenho andado sem tempo

Anónimo disse...

O mistério embrulhadinho na nossa imaginação, nos nossos sonhos...
À medida que te lia,outras imaginações tinha eu também, um cadito nada diferentes dessa outra ,mas muito parecidas com essa afinal eram.Primeiro o casaco a esvoaçar fez-me lembrar o homem bonito do Matrix...Afinal era mas não era! Era porque afinal apregoava mercadorias de outra dimensão que de tão terrenas se me espatifou, como a ela, o sonho que não era aquele.

Anónimo disse...

Já cá tinha estado e estava convencida que tinha deixado um beijinho. Mas não há problema, deixo agora.

Amaral disse...

Um ele, numa carruagem da vida, e os ponteiros faziam um ângulo agudo.
Um conto que só podia ser teu. Uma barba entre o branco e o amarelo palha? Estou a imaginar…

francisco artur da silva disse...

Olhei. Parado. Pensando sem apoio, nem no queixo. No ar.
Parei de pensar e passei ao imaginar como o comboio na agulha, com engulhos de balanços ( embalos) e entrei no jogo de reinventar vidas a cada uma que nos passa mesmo sem nos olhar.
Parei novamente. Passei ao reler o escrito, o teu, não o meu e passei ao degustar dos sentidos, todos, dos meus, não dos teus que não TE SEI. Fiquei a olhar o fumo, que se finge nuvem, não a pensar. Parado não se pensa a não ser que se vá, e eu fiquei estátua do sentir. Tudo isto para dizer coisa simples. Gostei. Muito.

Anónimo disse...

Obrigado pela visita ao meu blog.
Felicidades para o blog.
Vou continuar a visitar este blog e sempre que oportuno comentarei.

Raelma Mousinho disse...

são sempre deliciosas e peculiares as tuas impressões de mundo..
beijosss
Rah e Soul

Anónimo disse...

Olá! Hoje venho só convidar-te a seguir o link e a responderes ao desafio. Boa seman. Bejinhos

Conceição Paulino disse...

K bom k pasaste lá por casa. Tnha perdid o mapa do caminho.. Não te encntrava...muito bem dito e sentido. Bj grande e bom resto de semana :)

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

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meu honroso quarto lugar

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein