domingo, 24 de abril de 2005

era uma vez...

Escusado gritar por eles ... Timóóoooteo!...Esteeeer!!! Mariaaaana!!! Melhor mesmo é ir lá, juntinho de cada um. Devagarinho, assim que nem festinha, muito de lento, tirar tampa de ouvido e logo, ao mesmo tempo, dizer o que se quer: “Timóteo, vou contar história!” “Ester, vamos na roda do tapete?!” – a Ester é ainda quase de pegar no colo!
Eles sempre querem ouvir história. Lhes habituei eu que nunca tive, nas terras em que me vi crescer, aqueles materiais que Dona Marília compra para eles cada dia. Sim mesmo! Ela traz sem ser dia de festa de aniversário ou Natal... É só ver ela chegar naquela caixinha de subir que nem lagartixa em parede, desde o jardim até ao décimosextoandar! Ai! décimosextoandar?! e eu que nunca percebi o que ela queria de dizer com aquela palavra. Olha... eu que estava pensando em contar a eles, hoje, uma história que minha avó contava sobre palavras, e logo me encontro com uma que nem sei que ela quer dizer... se sequer é palavra! A Dona Marília chegava na tal caixinha (essa eu sei que é elevador!) e dizia: “Finalmente no meu...”e falava aquela tal que eu, agorinha mesmo, agora, descobri que nem sei se é palavra!
Bom, mas a conversar assim, com vocês que não estão aqui na sala onde cada um dos três rapazes filhos da Dona Marília, mais cinco primos e primas que hoje cá ficaram para dormir... a falar,mesmo que seja, como é, um falar só pensando, nunca mais eles se desprendem das ligações na rede...Olha outra palavra que não sei significado!! Mas é o que cada um deles diz : “Espera Maria das Dores que inda tou na rede”.
Nem que eu mesma, nunca apercebera que havia palavras que sendo ditas não eram sabidas! Estou quase me chorando de andar aqui tentando que eles oiçam a tal história sobre palavras e eu descobrindo que emprego algumas de mal entendimento. Mas não vou desistir. Olha quem?! Eu sou nascida naquela ilha que chamam de Cabo Verde e minha pele é negra mais que a da Dona Marília quando volta do solário. Deus que me valha que eu tou-me assustando de mim! Outra palavra a sair sem percepção! Solário?! Não sei, não, o que é! Minha cabeça hoje está me pregando partida...pois que eu julgava que solário era...Que sei eu o que eu julgava que era solário! Não julgava nada!
E com esta atrapalhação ainda vou me mentir...mentir apenas de pensar! Porra! Eu nem sei palavra melhor para, inda que só pensando, gritar minha indignação comigo – falar palavra sem saber o que ela é de querer dizer.
Pronto. Ando a pensar isto tudo ao mesmo tempo que vou ajuntando cada um dos meninos em volta do tapete, e agora como é que eu vou contar a história que começa assim: Houve um tempo em que a palavra andava presa.
Me diga eu a mim: Maria das Dores, como é que tu vais contar?
Mas vou que eu não sou de assustar com palavra nova ou que descobri que empregava sem lha perceber.
Então agora que eles já estão todos sentados, enrolados, abraçados aqueles ali no canto! Eu vou é começar. Já sentei a bunda que é que nem a da minha avó... no resto sou fininha, mas a bunda é rija e alargada.
Eles tão julgando que é de bichos da selva ou de tiros ou de aquele avião que deitava fogo e do outro que deitava saco de milho.
Hoje, a Maria das Dores vai contar uma história de um tempo em que as palavras, mesmo aquelas que eram muito percebidas, eram proibidas de sequer ser pensadas.
Era uma época em que as palavras podiam ser presas. Era uma época em que era crime palavra inventada, e mais ainda palavra de verdade. E as palavras podiam ser mortas.
As palavras andavam refugiadas em encontros nocturnos, perdidas em esquinas.
Palavras sussurradas muito, muito amadas.
A história é longa, mas tem como todas as que lhes conto, um final muito feliz.
Antes de contar pra eles, eu adianto o final.
Há um dia em que a Palavra, foi libertada. E com ela todas as palavras.
E as bocas e os olhos ficaram cheios de palavras à solta enchendo as ruas.


Esta é a história que lhes vou contar ...
-Ester, minha linda! não durma... Maria das Dores conta...
Era uma vez...


17 comentários:

VdeAlmeida disse...

Foi mesmo o dia em que as palavras puderam correr livres. Muitos se esquecem, outros não sabem, outros ainda querem fazer crer que é um dia como outro.
Mas nós, Seila, vamos fazendo por não o deixar no esquecimento.
Fiuei emocionado com o teu texto.
Beijo. Que tenhas um dia maravilhoso

Alexandre de Sousa disse...

Fazer o quê? Os teus textos são uma paixão

lique disse...

Por isso eu queria palavras novas ou, pelo menos, essas que foram libertadas com a frescura com que as dissemos nesse dia. O teu texto está lindo, mulher. Um cravo para ti e um beijão.

M.P. disse...

Continuação de muito bom feriado... Tenho passado par aqui, tenho-te lido mas ... pouco tempo para deixar desejos de continuação de BOM feriado! :)**

wind disse...

Belíssimo texto. Goza este 25 de Abril com muia liberdade e cravos:) Beijos

bertus disse...

...cheguei agora da rua, mas ainda a tempo de te ler. Um "conto" de palavras libertas, como talvez não pudessem ser escritas com tanta "facilidade" há trinta e um anos atrás.
Mas hoje, pudemos escrever e dizer o que nos vai na alma graças a "este 25 de Abril". Felizmente.
Um resto de dia feliz para ti.
Intés!!

Unknown disse...

Deixo-te 31 cravos e um grande beijo.

Hearthy Lovin Greens disse...

gosto das tuas historias, contadas com carinho.

gosto do teu blog*

Ana Russo disse...

Ai mulher que tens tantos blogs... que não foi fácil aqui chegar... este é o link que tenho no meu blog mas, quando faço click no teu nome, nos comentários que fazes... leva-me para blogs onde não escreves há já algum tempo... Continuo a esperar a "encomenda" da foto :) Bj. Penelope

Português desiludido disse...

Parabéns pelos textos e pelo aspecto e funcionalidade do blog

Anónimo disse...

Ainda bem que as tuas palavras não estão presas... Saem da tua mente em catadupa... E que lindas palavras que nos dás, sei lá... Beijinhos

Micas disse...

Mais dos teus textos deliciosos. Beijinho

Amaral disse...

Decididamente, gosto de ler as tuas histórias, como se estivesse sentado no muro duma casa alentejana, ao abrigo do Sol, tendo como fundo o chilrear da passarada. De livro no colo, espreguiçosamente, sem preceitos nem preconceitos…

Anónimo disse...

Sem palavras, as usual... Bj da Fernanda

gato_escaldado disse...

pela libertação da palavra. Sempre.
beijo.

Anónimo disse...

Pois é! Cá estou eu sem palavras para te comentar! É que, quando escreves assim límpida e autêntica, as minhas palavras são intromissão desnecessária.

Beijo

Anónimo disse...

http://universosassimetricos.blogspot.com/
Comenta o meu post de 22/4, please!

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein