quarta-feira, 13 de outubro de 2004

enquanto...

Havia um banco. Um banco igual àquilo a que se chama banco de assentar. Quatro pernas e um tampo. Quatro travessas a unir as pernas. Um ângulo desviava de cada uma a outra perna e desperpendiculava uma e as quatro do horizontal do chão. (afinal todos sabemos o que é um banco neste contexto de descrição de casa) No demais era um espaço. No demais eram corpos deitados. Juntos. Aconchegados. Apertados. Dormiam numa colcha de cheiro a descomidos.
Pancadearam na grade. (Podíamos dizer simplesmente que bateram à porta. Mas se não havia isso, há que encontrar modo de dizer de onde aquele ruído.) Um ruído surdo sobre tábua que é muitas tábuas com vários entres entre elas. Duas vezes bater. Às duas, foi ela que acordou. Ela. Um dos eles que dormia aconchegado,apertado (como vos aprouver). Arrumou um olho aberto. A cabeça descaiu do lado do ouvido que primeiro ouvira. Quem seria?! E isto não pensou. Gritou para o de lá dos entre tábuas quem é? Um grito que sabe, não é grito. Afirmação, não pergunta. Ela não falou. (podíamos dizer, apenas, que ela acordou com aqueles bates e esfregou um olho e pensou: “quem será?” mas...não foi bem assim...) Ergueu-se. Um corpo por de cima de outros. Alinhado numa vertical. Mais os outros se ficaram vistos na contrária posição. Corpos outros, que não ela, ondularam em espasmos de desouvir remorejando babas e sonidos sem voz e sem tino. Ela, a mão, nas tábuas. Os entres e as tábuas deslocadas para um ângulo agudo com...(podíamos dizer, simplesmente : levantou-se e abriu a porta, mas...não foi bem isso...).
Assombreou-se o escuro do de cá do ângulo, com o escuro do de lá. O emsombreado deslocou-se. O ângulo desfez-se. Ela seguida pelo que emsombreou. Acresceu um odor novo. Tudo renovou à horizontal. Tudo, não. O banco! O banco a fazer quatro ângulos com o tudo embaixo a ele.
Cheirava a cheiros. Rugiam silêncios entre corpos. Silvos. Esgares. Soluços. Fungares. Um choro. Um vagido. Um ranger de molares.
Nos entre as tábuas começava a clarear. O banco assomando num raio de sol à altura,precisa e segura,de uma mão, a primeira a sair de leve, nua, para o acordar de um dormir (aconchegado ou apertado, como vos aprouver) e correr para o de lá da rua.

Enquanto não consigo escrever o que se passou. Enquanto...outros o dizem de simples escrever...enquanto...escrevi este aqui - tem no por debaixo o que eu queria e não me sai de dizer nem, inda menos, escrever (e sangra...)

21 comentários:

Anónimo disse...

Podíamos dizer simplesmente que é mais um texto, mas não é isso. Podíamos dizer que isto é literatura, mas há aqui corpos. (Preciso ironizar agora: podia ter feito muitos comentários, mas fiz este! Que não sangra. O meu sorriso é uma distracção). willnow

almaro disse...

Não é costume meu, fazer comentários ao que se escreve, normalmente rescrevo os sentires que as palavras lidas e escritas produziram no que se esconde no Eu, no meu. Não sou de elogios, talvez porque não saiba o que fazer quando os recebo, por isso não os sei dar, porque fica sempre por dizer. Este texto foi diferente. O efeito que produziu foi idêntico ao sentido quando degusto os Mestres, Saramago e Pepetela. Dei comigo a saborear as palavras e a ter pena de ir avançando no texto (sentires idênticos ao deguste de um Porto velho, cheio de xistos, doces de sol, suores muitos e paladares únicos que nos transportam para o prazer). São sentires raros, por isso são aqueles que nos ficam no maravilhar. Apenas te posso deixar um abraço, por partilhares os teus sentires escritos, expostos e ordenados com magia, tua.

bertus disse...

O meu post de hoje também se inicia com um assento. E também tem pessoas dentro. Coincidências tão só
, que comparativamente ao teu é um rebuçado...apenas. Tu escreveste tudo o que é preciso quando se escreve com paixão, quando se re-inventam palavras, quando se não está para ninguém que o que importa são os vocábulos, as frases e as histórias que saem prara a luz do dia como por artes mágicas: doces e amargas, amargas e doces, que se lixe a ordem que o teu artigo de hoje é o frasco cheio de caramelos...deliciosos.
Beijos e intés!!

(nem sempre gasto do elemento irónico...)

mjm disse...

Que enleio de significados e significantes!!
Extravasa a prosa em coisa outra, e eu escancaro a boca, a outra, retorta de pasmo-espanto, não espanto-ai.
Ai, q encanto! A ti, sangra; a mim empapa.
kisses brutais!

mjm disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
lique disse...

O texto é extraordinário. Eu repito: extraordinário! Pela reinvenção e reconstrução de palavras e ideias, pela sensibilidade, pelo que dizes e pelo que não dizes. Que dirás, se quiseres, um dia. Mas desta forma que nos agarra e não nos deixa parar a leitura. Ou doutra forma que a vida nem sempre é literária. Um beijo grande, mulher fantástica!

Anónimo disse...

Estou pasmada pelo texto. Simplesmente magnífico a maneira como se lê. Do princípio ao fim sem parar e com uma atenção doida. bjs. wind

Faroleiro disse...

A verdade é que nem sei bem o que pensar, ainda tenho o pensamento a sangrar.

Faroleiro disse...

Já deu!
A luz viaja por caminhos que a própria sombra não se atreve a explorar.

Um Beijo, seilá... talvez dois.

Anónimo disse...

Ó marafada!!! Onde é que tu andavas que eu não te conhecia? Estes últimos textos que aqui nos ofereceste mostram-nos uma Seilá que eu não conhecia. Principalmente este. Que é tão extraordinário. Tão denso. E tão bonito. Continua assim minha amiga e Grande Mulher! Beijos.

robina disse...

Gostei muito do texto e do blog. Cá me terás mais vezes ;-)

Manuela Neves disse...

Aguardo o resto.
E::::
DEIXO MEUS ENLACES, MEUS ABRAÇOS
COMO UM EXERCÍCIO DE POESIA
QUE DE VEZ EM QUANTO GOSTO DE FAZER.
Visite meu BLOG para conferir!... Bjs.

o5elemento disse...

{ ... é sempre bom saber onde encontrar palavra*escrita de fundo*agradável… é sempre bom saber que tb a encontro AQUI… obrigado © .8. ... }

Anónimo disse...

Seilá, escreveste aquilo que me pareceu um ritual iniciático. Um texto depurado, cheio de reentrâncias. Gostei muito. Vou linkar o teu blog :-)

Dora
www.atrasdaporta.blogs.sapo.pt

Anónimo disse...

Ola aqui estou nos Intervalos e adorei a escrita. Muito boa, e claro que vou repassar :))) (tenho de mudar de casa que o sapo realmente nao dá) Beijo da capricornia *** Lina /acordomar

Anónimo disse...

Mais um outro texto de retirar o ar ao mais ousado..LOL... **

Anónimo disse...

O Anonymous anterior era MEU.. :/ M.P.**

Micas disse...

Cheguei até aqui devido ao comentário que deixas-te no Centro Cool Tural. Verdade é que tenho que agradecer ao sorriso do Tim! Adorei. Simplesmente magnifico este texto, e este espaço. Vou linkar. Fica bem.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Minha gentil dama,

Permita-me que de si me abeire e, com reverência de partir cruzes (canhoto!...), lhe amande com uma refinadíssima chapelada, que a dama merece, ó se merece!

"Pancadearam na grade", "uma colcha de cheiro a descomidos"?... Beeeemmmm!... Muiiiito beeemmmm!...

Não baralha palavras quem quer, mas só aqueles (ou aquelas) que já viram a vida em diversos alinhamentos. E também nem todos têm olhos para a vida.

SeiLá, deixa-me ficar por aqui a ironizar sobre esta coisa muito séria que foi o texto que nos deste. E não me leves a mal, porque a minha ironia é só para disfarçar o quanto gostei deste sugestivo "alinhamento de palavras".

Beijos.

mjm disse...

Claro que te vinha trazer beijos-aspirina!
Mas não resisti à atracção de reler esta extraordinária obra! É cinematográfica! A imagem inicial onde a câmara se demora; partir do pormenor e alongar o plano; recair noutro pormenor, demorar-se. E eu, de olhar colado aos teus olhos, às tuas imagens extraordinariamente novas...
O que eu gosto que me contem histórias! Não propriamente as estórias, que me enleio sempre na forma como a história é contada. Olha, pra te dar disso exemplo, relebro o extraordinário "Big Fish". Recordo agora o paralelismo da minha reacção. Quando já toda a sala se tinha mudado para o mundo de fora, eu permaneci, de lágrimas-espanto coladas à ficha técnica. Aqui, fico colada à efabulação da magia q diriges com essa mestria de quem sabe ser mãe-palavra.
Se eu tivesse algum poder, se esse poder pudesse não poder ter poder, este era o MEU texto.
BRAVO! BRAVO! Que bom, palavras novas!!
Alucina e rasga assim. Quero mais!
Kisssssss

mjm disse...

Este foi o texto q mais me marcou, sabes? Tens outros, vários, magníficos, brutais, mas a este, deixei q ficasse indelével, ou não deixei - ficou -, como tantas outras coisas aparentemente transitórias e q ficam a ecoar mais tarde como ecos.
Mecinha, este vai pro pé do outro.
A morada é
http://dixit-sic-dixit.blogspot.com/
porque: [o que nos marca, guarda-se. depois, surge a necessidade de o mostrar. chamam a isso partilha.]

kissss

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein