(Eras tão magra!)
Expeliste uma lufada de fumo branco enquanto equilibravas entre dois dedos um cigarro borrado do leve avermelhado com que cobrias os lábios. Lábios que deixaste um instante entreabertos como se um espanto se tivesse deles apoderado. Num lampejo que te foi indiferente, cruzaste com os meus, teus olhos de um azul debruado a preto como se pincel de artista chinês lhes tivesse desenhado contornos. Afastaste o fumo dos olhos com duas cortinas de renda negra que fizeste descair, levemente.
(O meu vestido ficou mais velho. A barriga distendeu-se-me um ror de centímetros. Uma fila de bonequinhos colocou-se em cima da mesa especados em gargalhada! Calei-os. Calei as gargalhadas ridículas. Desfiz-lhes a fila que formavam - cada ano da minha idade ali em meu redor, espevitados. Arrumei-os com o ar sério a que obedeceram na responsabilidade de me tornarem uma jovem senhora idosa. A barriga voltou à sua dimensão real e o vestido descaia sobre ela numa cumplicidade que os fazia, e a mim, readquirir uma serena dignidade.)
Foi um lapso.
Voltei a olhar-te...vendo. O teu sorriso foi tão inconsciente e sincero como o meu.
(Terias, tu também, a teu modo, sentido maior que nunca a tua magreza? algum osso a salientar-se indevido? Terias, por um lapso, um par de anitos a rabiarem sobre a tua mesa? Porventura terás sentido que as calças estavam demasiado lavadas... ou demasiado sujas?)
Aliviamos as nossas duas esperas quando o teu isqueiro se recusou acender novo cigarro. Foi planeado o gesto que nos soergueu com o mesmo objectivo?! olhando tu primeiro em volta e só depois se me dirigindo, e eu fingindo que não via a tua busca, aguardando ser solicitada.
(As calças estavam de facto demasiado lavadas e com vincos colocados ali no local certo de uma calça de corte. A blusa tinha o toque de uma marca que não identifiquei. As duas peças estavam separadas por um cinto de cabedal largo que apertavas, não displicente, não sobre um local qualquer das nádegas, mas bem assente na cintura. Calçavas sandálias rasas de tirinhas de um verniz azulado nuns pés de unhas bem tratadas e coloridas de azul, como nas mãos.
Como os olhos!!).
Retornamos às nossas esperas mordiscando a borda das respectivas chávenas, enquanto o café escorregava devagar. Gesto que repetimos quase em sincronia.
(E, de repente, desapareceste-me. Quero dizer, deixei de te dar atenção, perdi-te.)
Quando voltei a olhar, a mesa estava repleta de bonecos que só eu via e o teu pescoço saia da blusa numa rodada de pregas confundidas com um colar de pedras avermelhadas; as tuas mãos esguias e magras estavam igualmente fendidas de rugas e alteadas de veias arroxeadas. Um aro grosso cobria-te quase metade do anelar esquerdo.
(Pasmei e observei melhor – avidamente.)
Sorriste-me de modo consciente. Atabalhoadamente, respondi com um olhar que devia ser despegado do sorriso pois dirigia-se-te de outra forma que o sorriso – tentava perceber.
(Sim, era o teu olhar, apenas ele, que te fizera toda quando entraste. Apenas o olhar.)
Só então respondi ao teu sorriso.
Dois adolescentes sentaram-se ruidosamente, calorosamente, pedinchosamente à tua mesa.
Sorriste ao meu real sorriso.
(eu já me distraia com outras chegadas)
(rascunho encontrado ...1999?)
Hoje saí e esqueci o riso pendurado no cabide
deu em chover esparsado e eu sem o riso
apanhava a água (toda aquela água!) em cheio na cara
lágrimas do riso chorando de o ter esquecido!
12 comentários:
olhares femininos, finos,comparativos, medidores, quase inquiridores de almas que se escondem no olhar. Cenário de almas encobertas em máscaras que se ligam ao mundo em fumos desenhados no aroma do café.
Rascunhos de sempre, cheios de vida e de agonia. Aqui as palavras são testemunhos do real, sente-se o ambiente, o olhar e a perda. Muito bem escrito (vivido?). Aqui a arte é 'escreviver'. Gostei. (willnow/indolência).
Mulheres, olhares, avaliações, comparações, cumplicidades... No que reparamos sentadas numa mesa de café! Beijinhos
Olhares nos cafés de mulheres, às vezes dão sintonias:) Muito bonito o que está escrito;) wind
Ainda BEM que não deitaste esse rascunho fora! Uma relíquia que adorei ler! :)**
Tenho sido indelicado contigo, por não te ter dirigido palavra alguma depois do carinho com que tens tratado as minhas palavras. Acredita que não é por não me envolver com o teu sentir, leio-te com emoção, com aquela que escapam entre os silêncios de cada uma.
Mas os afazeres, muitos, retiram-me o tempo, que me obriga a estar pouco atento ao que sobra de mim, depois do dia a dia. Entendo-te triste, de sorriso escondido nas cores do Outono. Sei, e creio que o sabes também, ser um ciclo, uma espécie de onda do mar, que vai e vem, ora maior, ora suave. Ouvir o rebentar da onda faz adivinhar o som da próxima e acabamos por aprender e compreender a sua musica. Quando mais novos, temos tendência a furar a onda, arriscando-nos a um torcicolo valente ou a dor mais profunda. Com os anos aprendemos a navegar e com a serenidade do olhar, a bolinar…
Estou a ficar confuso, não o queria, só queria dizer que te espreito, discreto e que me sorrio contigo.
Agradeço as tuas palavras, que se me conhecesses, saberias que as trato todas como se vivas fossem, pelo menos aquelas que me olham e me trazem sentires e cores, como as tuas.
Um beijo, almaro
desculpa, seilá , logo este com tamtas palavras saiu duplicado, apaga-o por favor...
Ao que pode levar uma troca de olhares num café... quer dizer que em 1999 já andvas a preparar textos aqui para o blog, né? :) vá lá, um besito para ti.
Só uma passadinha rápida pra lhe deixar um beijinho. Se eu lhe tivesse levado a mal não tinha posto o linque na minha redacçao ;) Ambas nos entusiasmámos, mas daí não veio mal ao mundo - somos pessoas adultas e educadas. Não há nada a perdoar: irritei-me um bocadinho (o que às vezes até faz bem pra descarregar o nervoso) mas não me ofendi, até porque as últimas palavras do comentário mostravam que era uma provocação e não uma agressão. Retribuo o abraço.
Sobre o comentário acima: esqueci-me de dizer que é a Vi (mais o seu Cocó, claro).
{ ... vivo de rasgos e fragmentos de papel
pergaminhos de sentidos escritos
esperando restauros, dar; do tempo
anseio decerto e (1)breves, tento
valores de renovação e (2)entro
…
© biquinha
(1)dentro em pouco tempo
(2)começar de novo (restaurar) ... }{ rasgos*fragmentos*rascunhos }
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