Importante
não é eliminar nomes e outras burocracias como os cartões do banco ou a
certidão de nascimento. Tudo registos anódinos, mesmo os filmes, mesmo as
fotografias.
Importante
seria eliminar aquilo que nos é como sangue.
Importante
seria desfazer pronomes, adjectivos e tempos verbais, palavras com que compusemos
personagens, seres que, algum dia, tenham respirado o ar da serra ou o ar
empestado duma cidade grande.
Importante
seria apagá-las. Rasgar todos os papéis, fazer delete em cada arquivo. Que nunca ninguém pudesse espantar-se ou
cogitar hipóteses, saber sequer que nada fizemos que fosse para explicar-lhes e
muito menos para que soubessem de onde e como, e de que modo, lhes sobreveio
aquele jeito de ranger os dentes, aquele não saber conter um choro ou parar a inusitada gargalhada.
Importante
seria queimar tudo e ir apreciando a lassidão do fogo, descalços e nus, que
mesmo o cabelo que um dia foi farto, entrançado ou rodando em cachos, mesmo
esse, importante seria desbarata-lo em sucessivas tesouradas.
Não
deixar nem panos, nem lençóis ou fronhas, fatos, cuecas ou casacos. Queimá-los em
cova apropriada que, recebendo as cinzas, fosse terra onde nunca medrassem favas
ou tomates, fruta ou legume que, crescendo, conteria vestígios nossos oriundos
daquela saia, do colarinho da camisa de ramagens, dos punhos da blusa que vestimos
por um baptismo.
Ficarmos
despojados.
O
nome riscado de capas de livros, e até os tachos e malgas em que cozinhamos serem
retorcidos por pancada forte e fendidos em cacos os de vidro ou de loiça ou de
barro.
E nem
por descuido grave, deixar uma só frase a pespontar assim, ou semelhando: hoje
aconteceu-me perceber que o mundo pode ser diferente e que é em mim que começa
tudo.
Que
nenhuma ideia sobeje.
Que
não fique registo escrito ou desenhado, e nem raízes quadradas ou polinómios
traindo o ser que fomos.
Importante
para não nos imputarem um depois, seria destruir cada vestígio.
Para
que nada reste a seguir ao dia em que, dum modo ou de outro, se quebre o fio
ténue, indefinido e frágil, com que aqui andamos a sorrir ou com menos bons
sentimentos de uns para os outros.
Para
que nada mais sejamos, ou nos pretendam, quando for silenciada a orquestra,
perdido o ritmo com que flui o sangue.
Para
não haver depois, quando tudo falhe por falta de maestro, quando, por inércia, nos terminem as cadências do corpo: aurículas e ventrículos, cúspides e aorta, e o
compasso dos pulmões arfando.
Para
que não fique nada que nos perdure.
Para
que, definitivamente, não sejamos.
E em
jeito de epílogo deixarmos um desejo e algumas perguntas num modo
pueril de encararmos, assim como dizer: gostaria de envolver o corpo nu num
pano tinto com cores fortes, tons africanos, amarelos e azuis e verdes e
vermelhos que o fogo consumisse.
E constatarmos, pesarosos: gostaria, mas não tenho voz que peça, ou voz que
mande.
Assim,
ou perguntando num receio todo ele cérebro: as carnes ficam moles e a pele
franzida, o sangue ainda corre quando chega o cangalheiro?
E
acrescermos num lamento: pergunto, mas ninguém responde.
Ou inquirir
num temor contido repleto de ironia: nas veias, o sangue, parando, terá deixado
troços ocos, ouvir-se-ão estampidos como no fogo-de-artifício em feira de Agosto?
E não
soltarmos sequer o murmúrio que lamentasse: pergunto, mas, ainda que
respondam, já não oiço.
2 comentários:
forte e absorvente.
reflexivo!
boa semana.
beijo
:)
Muito bem escrito e muito cheio de raiva.
Este saiu das entranhas:)
Beijos
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