dois pequenos textos em torno da aldeia
uma aldeia que existe em maquete numa sala do Museu Municipal de Lagos
ou nem será isso, e existe algures uma Aldeia da Senhora do Forte e o Pedro Reis na sua arte fez dela uma miniatura
o certo é que a aldeia existe na magia de uns tantos que lhe fazem a Festa desde há mais de vinte anos
e um bocado inerte de casinhas toma forma e fica uma aldeia com gente
pode?!
coisa de malucos, decerto...
um dia convidaram-me: anda à festa!
e eu fui e achei piada
e porque gosto do insólito, escrevi um conto
e este ano escrevi outro
estão num opúsculo com dois desenhitos ilustrando
O
RAPAZ DA GRAVATA COR DE MALVA
O corpo estava deitado na
areia. Ou estaria caído, pensou Adosindo, aproximando-se. E ao ouvir o respirar
lento de quem está apenas dormindo, murmurou, aliviado:
– Afinal não é um morto.
E ficou investigando à luz
já fraca do sol-posto.
Era um corpo de homem. Jovem.
Talvez nem tivesse vinte anos. Fosse ele quem fosse, tinha uma farta cabeleira
negra espalhada na areia.
– Não teria vindo pelo mar
ou o cabelo estaria, ao menos, húmido, balbuciou Adosindo a olhar o corpo
virado sobre a areia, quase de borco.
Tinha a cara meio tapada e,
no entanto, Adosindo podia ver-lhe a tez escurinha e lisa, a boca entreaberta e
as narinas largas.
– De onde teria vindo,
interrogou-se.
Havia areia salpicada sobre
o fato de um linho branco amarrotado e, a ver-se quase nada por baixo do corpo,
a ponta rosa malva de uma gravata.
– Um tom semelhante à palma
da mão, ponderou Adosindo a olhar a mão esquerda que o homem tinha jogada, sem
cuidado, sobre a areia.
Adosindo regressava da
faina. Vinha do outro lado. Nesse dia, tinha vendido uma canasta de polvos.
Ajoelhou-se ao lado do corpo sem tocar-lhe, sem se chegar demasiado. Adosindo
estranhando aquele, ali, inusitado. Tinha-o visto, mal atracara a chata. O
barquito com o peixe para seu consumo. Vendera o resto, e sorte a sua que era uso
que vendesse tudo o que não comia. Era o que lhe dava para o vinho e para o
pão. Adosindo tinha trazido de um e outro para quando fosse ao outro dia, que
ali, daquele lado, não havia nada. Nem havia outro que ali viesse, de dia ou de
noite, que não fosse ele, o Adosindo pescador de peixe para a sua boca e um, a
mais, que vendesse. Uns cruzados com que aviasse a pinga de que gostava, mas
bebia com termos, e o petróleo para o candeeiro. Daria também para comprar
remédios se fosse necessário, mas Adosindo nunca tinha estado doente e, se
tinha uma febre, um inchaço em pé ou perna por enleio nas redes, trompaço em
rocha, ou mordida de moreia, tratava-os com mezinhas como fez daquela vez em
que escorregou na rocha e catrapus. A perna custou a curar-se, nem com tanto
cataplasma de ervas que lhe fez, e nem com a areia fria da madrugada. Tirando
isso, Adosindo era saudável, e a venda do peixe chegava para que tivesse umas
moedas escondidas em local tão guardado que receava que um dia, ele mesmo não
desse com o esconderijo.
O corpo mexeu-se. O rapaz
rezingou como se fosse dorido e voltou-se. Ficou de costas sobre a areia, e
Adosindo afastou-se sem ruido. Quem o visse a saltar como coelho julgaria que
era ele o ser furtivo ali na língua de areia entre o mar e a ria.
De onde estava, Adosindo mal
lhe via os olhos a fixarem um céu que era já de estrelas e, mais desconfiado
que medroso, sustinha o ar nos pulmões. Que nem um leve respirar o denunciasse.
E foi sem dar pela presença
de Adosindo, que o rapaz se ergueu e ficou sentado. Ficou de costas voltadas
para o local onde estava Adosindo. Não podia vê-lo. Esticou os braços em cruz
de cristo. Espreguiçou-se. Depois, devagarinho, pôs-se de pé, os dois braços
erguidos e, muito como se fosse ilusão o que Adosindo estava vendo e ao outro
dia nem iria contar no cais, o homem foi subindo, os pés a soltarem-se da areia
muito esticados, descalços os pés dele a deixarem o chão que a lua cheia
iluminava, redonda, vermelha, a rasar o horizonte.
Adosindo benzeu-se.
Adosindo ajoelhou na areia a
olhar os céus, e benzeu-se de novo.
Seria deus ou anjo, ou seria
a alma dum antepassado. Adosindo não sabia, nem isso lhe deu cuidado. Benzeu-se
e ajoelhou para que não se desse o caso de ser castigado por arcanjo ou
demónio, mas cuidado dava-lhe não perceber como o homem tinha ali chegado. Que
partisse daquele modo, sendo espanto nem era nada que o perturbasse, que o que
Adosindo desejava é que o homem nem ali tivesse estado.
Tirou os peixes da chata e
recolheu-a para terra e, por razões que nem ele sabe, Adosindo, nos passos que
deu a dirigir-se para a choupana, evitou passar no local onde o homem, ainda
nem há nada, estava deitado. Passou ao largo, e assim tomaria o costume, a
partir dessa noite.
Se, no dia seguinte,
Adosindo contasse, lá do outro lado, ninguém iria acreditar, como não tinham
acreditado numa palavra do que lhes contara quando foi de terem aparecido as
pedras. Um monte de pedras naquele mar de areia. Tantas pedras quanto as
necessárias para construir o barraco onde morava. Fora no tempo dele ter vindo
tresmalhado da cidade, que antes viver no desterro daquela língua de areia, a
ria de um lado e o mar do outro, que ouvi-los, dia e noite: Adosindo isto e
Adosindo aqueloutro, que ele lá tinha que ser inculpado dos erros que tinham
feito aqueles que o puseram no mundo.
Nem triste nem abandonado,
viera apenas para ficar distante, viver sozinho e, a ligá-lo ao outro lado,
apenas a chata e o peixe, um naco de pão o vinho e o petróleo para o candeeiro.
As pedras tinham aparecido e
Adosindo nem tinha estranhado. Serviu-se delas para construir o barraco, e o
telhado fê-lo de algas entretecidas com caniço. Mais tarde, havia de trazer
umas telhas, mas isso foi muito depois.
Adosindo não iria contar.
Desta vez, não lhes daria motivo. Não diria: sabem, estava um rapaz deitado na
areia e levantou-se, abriu os braços e subiu aos céus. Nem por mim deu. Nem
salve-o deus, deixou que lhe dissesse.
Não permitiria que, a
ouvi-lo, se benzessem duas vezes as mulheres e se rissem dele os homens,
inconfessadamente receosos.
Mas quando os jornais
noticiassem, Adosindo teria a certeza que era o rapaz que tinha estado deitado
na areia. Diriam que numa aldeia que nem tinha sido construída, numa aldeia que
existia apenas no espírito de alguns homens, um rapaz tinha criado uma
barcarola, uma espécie de pássaro que, ao toque de uma fita de seda rosa malva
dependurada no pescoço como gravata, o levava de uma banda a outra através dos
tempos.
Adosindo sabia e, ainda
assim, a ouvir as notícias, havia de benzer-se.
Na língua de areia, ficaria,
para todo o sempre, uma mancha rosada no local onde Adosindo vira, e só ele
tinha visto, subir aos céus um rapaz que, se tivesse vindo do outro lado, só
podia ter vindo a nado ou de barco, e não teria sido, que o corpo estava completamente
seco e, para aqueles lados, era só a chata do Adosindo e não tinha sido ele a
trazê-lo.
2 comentários:
O outro já conhecia, este é belíssimo.
O desenho deste faz-me lembrar vagamente o Príncipezinho:)
Beijos
È um belo conto! Gostei muito. Continua a escrever coisas assim para nos dares o prazer de as ler.
Beijinhos.
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