li que venceu o prémio literário internacional Nonino 2014, atribuído por uma empresa secular italiana, produtora da bebida alcoólica grappa (para quem, como eu não sabe, é uma aguardente italiana)
e lembrei-me
aqui deixo uma das suas crónicas
Os Pobrezinhos
"Na minha família os
animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os
animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre,
pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana
buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de
serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados
pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se
salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência
doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras
características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não
andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem
pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos,
parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima
distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
- Eu não sou o seu pobre;
eu sou o pobre da minha Teresinha.
O plural de pobre não era
«pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias
reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e
outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os
seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da
periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de
distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não
serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de
igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as
minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que
esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só
nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por
correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada,
não tem noção do dinheiro)
de forma de deletéria e
irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na
casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma
recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá, não gaste
tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu,
malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou
comprar um Alfa-Romeu
Os filhos dos pobres
definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao
perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um
encolher de ombros
- O que é que o menino
quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser
pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para
jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres
presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em
fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade
sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a
Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de
cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a
vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou
óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico
que a minha mãe, espirrando, me ordenasse
- Ora ofereça lá a vida
que estou farta de me assoar
e eu fosse direitinho para
o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre
Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família
assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os
milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos
premiados,milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a
incenso.
Tanto pobre, tanta
Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que
principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o
sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde
cortavam a cabeça aos reis"
1 comentário:
Simplesmente delicioso:)
Beijos
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