Numa das gavetas da cómoda havia um
album.
Um album de fotografias incompleto jazendo entre duas camisas
de noite ainda com goma, ainda muito tesas. Alvas, não fosse o amarelado que o tempo
lhes pusera em cima.
E passando o dedo naquelas
folhas de cartolina preta, recoberta cada uma por um fino papel de seda, lá
estavam, a atestar as faltas de fotografias, os locais onde elas tinham sido
presas em cada um dos cantos, por fiapos de papel transparente.
Espaços onde o negro
do papel não fora cozinhado pela luz dos candeeiros e pela luz do sol. E pela
luz de tantos olhos que tinham ficado, horas e horas, a olhar as fotos:
Um album somente pela casa
inteira, que Maria Teresa, prouvera que repousando nos braços do Senhor
em que tanto cria, nunca fora dada a retratos, e se os havia era apenas porque
o marido, com quem convivera mais de meio século até o perder, assim, sem ser
esperado, mas também sem sofrimento, o marido, dizia eu, fora grande amigo do
dono da primeira casa de fazer retratos na cidade. Disso que houvesse, além do
album, aquela pose deles em caixilho de oiro, dependurada no alto da escada.
E havia ainda aquela
paisagem nocturna. A cidade em três exposições.
Fora-lhe oferecida pelo fotógrafo no dia em que ela tinha completado trinta anos. Pendurara-a por cima da mesinha que tinha no quarto ao lado da janela, mais precisamente, do lado direito da janela, de modo que a luz não fizesse sombra quando Maria Teresa escrevia, e ela sempre fora de escrever com a mão direita o que se não dera com o seu irmão que ainda hoje escrevia de esguelha como dizia a mãe deles a referir-se àquele modo que o filho tinha.
Fora-lhe oferecida pelo fotógrafo no dia em que ela tinha completado trinta anos. Pendurara-a por cima da mesinha que tinha no quarto ao lado da janela, mais precisamente, do lado direito da janela, de modo que a luz não fizesse sombra quando Maria Teresa escrevia, e ela sempre fora de escrever com a mão direita o que se não dera com o seu irmão que ainda hoje escrevia de esguelha como dizia a mãe deles a referir-se àquele modo que o filho tinha.
Em outras gavetas, nada
havia que fosse cobiçado.
Roupa simples, muito usada, e no
guarda loiças nem faqueiros de prata e nem outros, e a alpaca das colheres, e o
osso no cabo das facas, tinha sido há muito tempo, tal como o linho lavrado das
toalhas e respectivos guardanapos, ainda que usados apenas em dias de consoada
e aniversários. Mas tinham sido sempre os mesmos, um ano a seguir a outro ano,
e netos, e bisnetos. Andariam por ali, confundidos com outros panos. E teriam
sobrado uns garfos e a colher de concha, verde de zinabre.
No fundo das gavetas havia, isso sim,
cotão de muitos anos e muitas pratinhas de chocolate alisadas com a unha do
dedo polegar. Com cuidado, para não rasgar.
3 comentários:
Ao ler esta prosa, levaste-me à minha infância e vi-me a ver as fotos e álbuns da minha avó que eram tal e qual assim:)
Beijos
No fundo das vidas fica sempre uma gaveta.
Essa das pratinhas "alisou-me" completamente...
Vou reler e logo digo mais. Ou não. :)
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