terça-feira, 17 de abril de 2012

sem deus e sem demónios




 
não escreve com um Deus no pensamento, nem tem um Profeta que lhe guie a fantasia, nem um Ideólogo que lhe mostre os cantos do planeta onde se faz a História
talvez ela escreva com pó de estrelas, ou farpas de fogueira, ou sangues de vidas suicidas
ou talvez com cheiros
os odores fedorentos dos mijos das velhas e das meninas badalhocas no tempo em que nem se sonhava com água em torneiras
os cheiros das bocas destratadas dos homens pelas tabernas, os odores a veneno disfarçado nas moléculas bem cheirantes dos perfumes caros das mulheres – putas muitas delas ou viuvas tristes de homens mal casados
e se escreve com cores, serão vermelhos
sempre o encarnado pincelado na cor da terra ou na cor de um vestido, e se mais não houver, na cor do sangue que desce nas pernas das mulheres
o sangue sempre correndo nas pernas das mulheres
e nem Deus nem Demónios
ao menos, não os seres transcendentes que lhe contaram nas idas ao catecismo - ela menina, filha de pai ateu mas cheinho de receios: se der que haja inferno e céu, pois que a menina tenha a sabedoria do ensino para poder escolhe-los, pensaria assim seu pai, e que a mãe lhe vestisse o vestidinho de domingo e a mandasse à catequese
mas a menina cresceu e esqueceu o Deus e a Mãe d’Ele e essas entidades que eram os Anjos e os Demónios
rumou em outros universos e hoje, se fala neles, é apenas na dúvida que lhe resta de que existam e ela os não nomeie, esse receio que traz consigo, quiçá o mesmo que seu pai lhe deu de legado nalgum gene
prefere dar- lhes nomes
chamá-los Fernando, Hilário, Felismina, Hermengarda ou Luísa
ou ela transforma o Deus uno em muitos deuses, e anjos sorridentes, e demónios travessos, sem nunca deixar que cada um seja, no que escreve, mais que palavras exorcisando o pecado enorme que é ela não acreditá-los
evita assim dizer qual paraíso, qual inferno, qual vida eterna e qual pecado capital e mais o perdão e o poder da oração, que é o que ela sente
nada de heresias no que escreva e nem confissões
e ela não escreve, nunca, vozes de criança bem tratada e sua ama, ou menino na escola aprendendo palavras virgens de sentidos na inscrita caligrafia que desenha, ou orando ao Deus do Céu que lhe abençoe o prato de comida
nem conta histórias de meninas virgens anunciadas por anjos que as trespassem com espadas luminosas num cerimonial todo ele vindo das alturas
e no entanto, as palavras dela são palavrinhas mansas, ainda que despidas desse dizer Senhor, Senhor numa oração sentida ou do clamor de um perdoai-nos a nós almas desmandadas por purgatórios
as palavras dela não têm a densidade que possuem as que, tendo descido ao fundo dos infernos, trouxessem nelas os odores da carnificina

3 comentários:

Cinthia Kriemler disse...

Com certeza não é sobre si esse texto! "as palavras dela não têm a densidade que possuem as que, tendo descido ao fundo dos infernos, trouxessem nelas os odores da carnificina"... É o oposto da sua escrita! Você pode não ter descido ao inferno,mas conhece a natureza do Homem como ninguém. Eu diria mais: enquanto alguns estão apenas para o drama factual, pontual, você descreve, inventa, relata, narra personagens em sua amplitude, o que permite ao seu leitor olhar para cada um deles e enxergar uma história completa. Não aquela história do momento do fato apenas, mas o que vem por trás desses homens e mulheres, de modo a permiti ao leitor traçar-lhes todo um perfil psicológico. E isso é fantástico.

wind disse...

Gostei muito, e com muita densidade e profundeza!
Beijos

Jorge Pinheiro disse...

Mais uma vez não sei se há correspondência com alguém que conheces. Há um paradigma que se identifica, um estilo de ver... de repensar.

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

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ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein