não escreve com um Deus no pensamento, nem tem um Profeta
que lhe guie a fantasia, nem um Ideólogo que lhe mostre os cantos do planeta
onde se faz a História
talvez ela escreva com pó de estrelas, ou farpas de
fogueira, ou sangues de vidas suicidas
ou talvez com cheiros
os odores fedorentos dos mijos das velhas e das meninas
badalhocas no tempo em que nem se sonhava com água em torneiras
os cheiros das bocas destratadas dos homens pelas
tabernas, os odores a veneno disfarçado nas moléculas bem cheirantes dos
perfumes caros das mulheres – putas muitas delas ou viuvas tristes de homens
mal casados
e se escreve com cores, serão vermelhos
sempre o encarnado pincelado na cor da terra ou na cor de
um vestido, e se mais não houver, na cor do sangue que desce nas pernas das
mulheres
o sangue sempre correndo nas pernas das mulheres
e nem Deus nem Demónios
ao menos, não os seres transcendentes que lhe contaram
nas idas ao catecismo - ela menina, filha de pai ateu mas cheinho de receios:
se der que haja inferno e céu, pois que a menina tenha a sabedoria do ensino
para poder escolhe-los, pensaria assim seu pai, e que a mãe lhe vestisse o
vestidinho de domingo e a mandasse à catequese
mas a menina cresceu e esqueceu o Deus e a Mãe d’Ele e
essas entidades que eram os Anjos e os Demónios
rumou em outros universos e hoje, se fala neles, é apenas
na dúvida que lhe resta de que existam e ela os não nomeie, esse receio que traz consigo,
quiçá o mesmo que seu pai lhe deu de legado nalgum gene
prefere dar- lhes nomes
chamá-los Fernando, Hilário, Felismina, Hermengarda ou
Luísa
ou ela transforma o Deus uno em muitos deuses, e anjos
sorridentes, e demónios travessos, sem nunca deixar que cada um seja, no que
escreve, mais que palavras exorcisando o pecado enorme que é ela não
acreditá-los
evita assim dizer qual paraíso, qual inferno, qual vida
eterna e qual pecado capital e mais o perdão e o poder da oração, que é o que
ela sente
nada de heresias no que escreva e nem confissões
e ela não escreve, nunca, vozes de criança bem tratada e
sua ama, ou menino na escola aprendendo palavras virgens de sentidos na
inscrita caligrafia que desenha, ou orando ao Deus do Céu que lhe abençoe o
prato de comida
nem conta histórias de meninas virgens anunciadas por
anjos que as trespassem com espadas luminosas num cerimonial todo ele vindo das
alturas
e no entanto, as palavras dela são palavrinhas mansas, ainda que despidas desse
dizer Senhor, Senhor numa oração sentida ou do clamor de um perdoai-nos a nós
almas desmandadas por purgatórios
as palavras dela não têm a densidade que possuem as que,
tendo descido ao fundo dos infernos, trouxessem nelas os odores da carnificina
3 comentários:
Com certeza não é sobre si esse texto! "as palavras dela não têm a densidade que possuem as que, tendo descido ao fundo dos infernos, trouxessem nelas os odores da carnificina"... É o oposto da sua escrita! Você pode não ter descido ao inferno,mas conhece a natureza do Homem como ninguém. Eu diria mais: enquanto alguns estão apenas para o drama factual, pontual, você descreve, inventa, relata, narra personagens em sua amplitude, o que permite ao seu leitor olhar para cada um deles e enxergar uma história completa. Não aquela história do momento do fato apenas, mas o que vem por trás desses homens e mulheres, de modo a permiti ao leitor traçar-lhes todo um perfil psicológico. E isso é fantástico.
Gostei muito, e com muita densidade e profundeza!
Beijos
Mais uma vez não sei se há correspondência com alguém que conheces. Há um paradigma que se identifica, um estilo de ver... de repensar.
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