quarta-feira, 14 de março de 2012

Maria(s)


Que era uma menina, disse-o a Senhora Benvinda num tom de mágoa:
– Olhe, é uma menina! – e a mulher, a cortar o cordão, quereria avisar da desgraça que sempre se iniciava no nascer de uma filha.
Maria Vasilima.                                                       
O pai insisitiu que ela fosse baptizada desse modo desusado.
Um homem de trabalho, Ernesto Demóstenes deixou-lhe esse nome estranho como única herança, pois na semana mesma de ela ter nascido, terá guinado em demasia o eixo da carroça, e foi encontrado falecido debaixo dos legumes e da fruta com que ganhava a vida.
Até ter a idade de levantar-se nas perninhas, Maria Vasilima era apenas uma menina muito morena e muito rechonchuda. Mas a dar os primeiros passinhos, logo se mostrou de pernas tortas e bambas num corpinho sem graça. Falaria tarde e com defeito no modo de dizer os ésses: cuspia as letras na língua carregada de saliva, a espreitar disforme entre os lábios. E diria mal a maioria das palavras, ou porque as engolia, guturais e roucas, ou porque lhes trocava as consoantes. E, sobretudo, porque nem percebia como havia de empregá-las.
– A Maria é parva! – diria dela o irmão Fernando, filho do Manel Serúdio, que a mãe tinha sido junta com esse homem que morreu tuberculoso, e tinha tido aquele filho, muito antes de Maria Vasilima. 
E haviam de dizer que ela era poucochinha. Ou diriam: aquela moça não tem tino. E haviam de apelidá-la de demente, e ela rindo e babando-se, a segurar uns fios de lã com que gostava de enfeitar-se depois de os aldrabar com as agulhas.
– Estou a fazer malha como as senhoras! – entaramelava a rir um riso de menina tola.
E na idade de ir a uma escola, nunca a aceitariam:
– A menina não tem qualidades – diria a professora.
Maria Vasilima a quem a mãe batia por tudo e por nada, era também sovada pelo irmão.
– Maria, vai buscar vinho! – gritavam-lhe. 
E ela demorava-se. Ficava pelas tabernas. Os homens ofereciam-lhe bebida e rebuçados.
– Queres chupar Vasilima?! – diziam-lhe. E riam-se, alarves.
Ela que já adulta seria sempre uma criança, não entendia. Se nem tinha entendido quando o irmão se escarranchou sobre ela!  Ainda sem a idade de ter sido senhora, não gritou a dor que sentia, que a não deixavam as manápulas dele a taparem-lhe a boca.  E se não morreu dessa vez a desfazer-se em sangue e lágrimas, também não morreria quando o velho Pascoal a recostou nas redes que remendava às tardes! A ela pareceu-lhe que o homem lhe ía contar um conto, e Maria Vasilima tinha esse gosto de ouvir contos... mas o velho nem disse uma palavra, e tratou-a como ela via os cães. E ainda lhe descoseu a saia, o que lhe valeu uma sova com o cajado como a mãe fazia quando o irmão vinha bêbado ou não lhe entregava a féria. A mãe guerreava muito.
– Andas por aí a beber e a dar-te aos homens! és a minha vergonha!
E os homens a oferecer-lhe:
– Queres um rebuçado Vasilima?!




conto apresentado no âmbito dos contos de Barão

2 comentários:

Jorge Pinheiro disse...

UMA HISTÓRIA DE "FACA E ALGUIDAR" :))

wind disse...

Forte, muito forte e demasiado sério.
Muito bem escrito!
Beijos

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein