Que era uma menina,
disse-o a Senhora Benvinda num tom de mágoa:
– Olhe, é uma menina! –
e a mulher, a cortar o cordão, quereria avisar da desgraça que sempre se
iniciava no nascer de uma filha.
Maria Vasilima.
O pai insisitiu que ela fosse
baptizada desse modo desusado.
Um homem de trabalho, Ernesto
Demóstenes deixou-lhe esse nome estranho como única herança, pois na semana mesma
de ela ter nascido, terá guinado em demasia o eixo da carroça, e foi encontrado
falecido debaixo dos legumes e da fruta com que ganhava a vida.
Até ter a idade de
levantar-se nas perninhas, Maria Vasilima era apenas uma menina muito morena e muito
rechonchuda. Mas a dar os primeiros passinhos, logo se mostrou de pernas tortas
e bambas num corpinho sem graça. Falaria tarde e com defeito no modo de dizer
os ésses: cuspia as letras na língua carregada de saliva, a espreitar disforme
entre os lábios. E diria mal a maioria das palavras, ou porque as engolia, guturais
e roucas, ou porque lhes trocava as consoantes. E, sobretudo, porque nem
percebia como havia de empregá-las.
– A Maria é parva! –
diria dela o irmão Fernando, filho do Manel Serúdio, que a mãe tinha sido junta
com esse homem que morreu tuberculoso, e tinha tido aquele filho, muito antes
de Maria Vasilima.
E haviam de dizer que ela
era poucochinha. Ou diriam: aquela moça não tem tino. E haviam de apelidá-la de
demente, e ela rindo e babando-se, a segurar uns fios de lã com que gostava de
enfeitar-se depois de os aldrabar com as agulhas.
– Estou a fazer malha
como as senhoras! – entaramelava a rir um riso de menina tola.
E na idade de ir a uma
escola, nunca a aceitariam:
– A menina não tem
qualidades – diria a professora.
Maria Vasilima a quem a
mãe batia por tudo e por nada, era também sovada pelo irmão.
– Maria, vai buscar
vinho! – gritavam-lhe.
E ela demorava-se.
Ficava pelas tabernas. Os homens ofereciam-lhe bebida e rebuçados.
– Queres chupar Vasilima?!
– diziam-lhe. E riam-se, alarves.
Ela que já adulta seria
sempre uma criança, não entendia. Se nem tinha entendido quando o irmão se
escarranchou sobre ela! Ainda sem a idade
de ter sido senhora, não gritou a dor que sentia, que a não deixavam as manápulas
dele a taparem-lhe a boca. E se não
morreu dessa vez a desfazer-se em sangue e lágrimas, também não morreria quando
o velho Pascoal a recostou nas redes que remendava às tardes! A ela pareceu-lhe
que o homem lhe ía contar um conto, e Maria Vasilima tinha esse gosto de ouvir contos...
mas o velho nem disse uma palavra, e tratou-a como ela via os cães. E ainda lhe
descoseu a saia, o que lhe valeu uma sova com o cajado como a mãe fazia quando
o irmão vinha bêbado ou não lhe entregava a féria. A mãe guerreava muito.
– Andas por aí a beber e
a dar-te aos homens! és a minha vergonha!
E os homens a
oferecer-lhe:
– Queres um rebuçado Vasilima?!
conto apresentado no âmbito dos contos de Barão
2 comentários:
UMA HISTÓRIA DE "FACA E ALGUIDAR" :))
Forte, muito forte e demasiado sério.
Muito bem escrito!
Beijos
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