Este texto é a parte final de uma crónica que escrevi há uns tempos.
Pareceu-me tão actual, tão a explicar desassossegos que andam por aí no ar, que o transcrevo.
O suor dos corpos tem um cheiro pestilento e fervilha de ódios à luz encarniçada dos archotes. Num canto, a mulher que vi esta tarde na rua. Ou quiçá a confundo: o mesmo rosto enegrecido, os mesmos ossos assomando sob a pele, a mesma criança mal enrolada num xaile de cor incerta, sujo como ela. A mesma mulher ou outra, a personificação do povo indigente que acompanhei uns instantes. Eu a tentar desviar-me do cortejo para uma rua transversal e a mulher no ritmo, que era um passo estugado, marcado pelo avançar da turba. Uma mulher com um rosto que emanava uma força estranha. Não era ódio. Era determinação em adquirir a todo o custo o alimento para os seios que ela tinha secos, que já nem chorar lhe sabia o filho. Uma mulher lutando num desespero, os olhos de um azul límpido e os lábios ressequidos a gritarem: queremos a Bastilha. E que saberia ela do que assim dizia, indago-me e sinto-me ingrato: que o homem suporta quase tudo, mas a fome, o corpo a desfazer-se, fraco, os olhos sobrando dos ossos descarnados: ver isso nos filhos, não há homem que suporte sem que se solte a besta, a essência animal da sobrevivência.
Terá sido disso que se ergueu esta tarde o povo a derrubar o mito indestrutível..."
Terá sido disso que se ergueu esta tarde o povo a derrubar o mito indestrutível..."
o mito indestrutível da Bastilha, referia o texto
mas poderá ser outro e outro da nossa actualidade
um dia destes...
ou andarei eu a fazer leituras destempadas dos acontecimentos?
mas poderá ser outro e outro da nossa actualidade
um dia destes...
ou andarei eu a fazer leituras destempadas dos acontecimentos?
4 comentários:
Também eu tenho a sensação de "um dia destes"...
Escritora, muito forte!
Beijos
previsões
Eu diria que dentro de nós há uma Bastilha para tomar.
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