sexta-feira, 2 de abril de 2010

eu estou a lê-la e as minhas letras desfizeram-se

como pude não tê-la lido antes!
este pequeno trecho de a cidade sitiada de Clarisse Lispector onde as coisas exalam como se fossem elas os seres e não o contrário

"Eram três os degraus para a sala de jantar e a di­ferença de nível dispunha o aposento em profundeza. A má eletricidade do subúrbio, então distribuída apenas por algumas casas, construía à noite um compartimento cheio de estruturas e núcleos onde o tique-taque do pên­dulo tombava preciso — círculos concêntricos se apa­gando nas sombras dos móveis. Abafadores de bule amarelecendo, o passarinho empalhado, a caixa de ma­deira com vista dos Alpes na tampa, eram a presença minuciosa de Ana.
A casa parecia ornamentada com os despojos de uma cidade maior.
— Você está cansada? perguntou Ana da cabeceira da mesa, franzindo os olhos como se a filha estivesse longe e a luz entre ambas fosse forte.
Lucrécia não gostava deste aposento tão impregnado da viuvez feliz de Ana. Para entendê-lo seria preciso continuidade de presença, parecia pensar a moça pro­curando olhar cada objeto: eles nada revelavam e guar­davam-se apenas para o modo de olhar da mãe. Que os deslocava e os espanava — afastando-se em seguida um passo para trás, como se os estivesse esculpindo, para examiná-los de longe com delicadeza de míope — um olhar de lado. Os próprios objetos agora só podiam ser vistos de viés; um olhar de frente os veria vesgos. De­pois de examiná-los Ana suspirava e fitava Lucrécia em sinal de que já estava desocupada; Lucrécia desviava os olhos para o teto, grosseira.
Cada vez mais Ana procurava se aproximar, an­siosa por lhe participar os insignificantes segredos que a sufocavam: de fato já se queixava de não dormir de noite. Lucrécia desviava os olhos.
Há muito tempo solitária, e amando aquela viuvez sem os sobressaltos que podem vir de um homem, a mu­lher começava porém a inquietar-se — e a tentar arras­tar a filha para uma intimidade onde ambas construi­riam compensações sorrateiras, suspiros e regozijos, aquele prazer de costureira com a sua costura, Ana que se rejubilava quando havia alguma roupa a emendar."

[...]

2 comentários:

wind disse...

Ela é extraordinária!:)
Beijos

Li Ferreira Nhan disse...

Grande Clarisse!
beijo

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein