– A minha avó chamava-se Maria da Assunção, mas todos a conheciam por Marquinhas.
Isaura a bebericar um chá de tília a e a recordar carnavais com Iria.
Naquele Entrudo, como de costume, em cada sala de baile estava armado o mastro com fitas e balões, e havia uma mão cheia de saquinhos de pano cheiinhos de areia ou serradura, conforme. E havia serpentinas e confetis. Os sacos de pano eram feitos expressamente. Mal passavam os reis, e já em cada casa havia mãos que recortavam tecidos velhos, a fazerem saquinhos que nas vésperas de se iniciarem os festejos, eram cheios e atados, ficando preparados para serem belas armas de brincar ao Carnaval: os saquinhos, prenhes, jogados a um e outro no cortejo ou atirados da janela a um incauto que passasse.
– Costumes. – disse Isaura a ver se a outra se mantinha atenta ao que estava contando.
Nesse Entrudo, a minha avó juntou as quatro filhas, minha mãe entre elas, e vestiu-as com saias de muita roda e saiotes embebidos em muita goma. Colocou na cabeça de cada uma um lenço de ramagens e, no braço, a uma pediu que levasse um cesto, a outra que segurasse uma galinha, à minha tia mais novita pendurou no braço uma bilha de trazer azeite, e à minha mãe, a avó Marquinhas disse que levasse um bácoro aconchegado no avental – um porco ainda mal desmamado que minha mãe segurou com desvelado cuidado.
Minha avó materna, vestiu-se parecida com as filhas, mas colocou arrecadas nas orelhas, herança da mãe dela, e um xaile sedoso, negro e com cadilhos a descaírem na camisa branca. Na cabeça colocou um lenço todo ele em seda pura, ou imitando:
– Sei lá eu… – e Isaura riu-se a acrescentar, para compor o quadro que ouvira repetido à avó e à mãe: levava um lenço vermelho sobre as tranças, que a minha avó as tinha muito pretas.
E prosseguiu contando.
Pela hora em que o povo, e o resto da sociedade, começava a dirigir-se à sala de baile a que, por profissão e escalonamento social, lhe cabia em uso, minha avó Marquinhas deu a cada filha uma mascarilha que ela mesmo tinha feito em flanela preta com dois buracos para que assomassem os olhos. Em si mesma colocou, presa por fitas de cetim, no mesmo tom, uma rede negra, de tal modo colocada que no rosto mal se apercebia o brilho dos seus olhos. Nas mãos enluvadas de vermelho, Marquinhas segurava um baralho.
– Seriam onze horas e o baile na sociedade dos ricos ía animado.
Isaura afirmou assim como se lá tivesse estado, a sorver mais um gole de chá e a prosseguir o conto sob o olhar atento de Iria que tasquinhava um biscoito.
Minha mãe contava que havia muita gente pelas escadas e que se apartaram a fazerem filas enquanto elas subiam, e que gritaram: deixem entrar as ciganas, que seriam elas com minha avó adiante e o bácoro grunhindo preso nos bracinhos de minha mãe ainda quase criança.
Minha mãe contava que havia muita gente pelas escadas e que se apartaram a fazerem filas enquanto elas subiam, e que gritaram: deixem entrar as ciganas, que seriam elas com minha avó adiante e o bácoro grunhindo preso nos bracinhos de minha mãe ainda quase criança.
Contavam, minha mãe e minha avó já falecidas – houve tempo que contavam ao despique – que no salão parou o baile, arredaram-se cadeiras e as senhoras olharam-se a perguntarem o que seria aquilo, e outros riam a verem a minha avó andando de um lado para o outro na roda que se fizera no salão mais chique da cidade.
Marquinhas e as suas quatro filhas ensaiando o que nem tinham ensaiado.
Minha mãe diz que teve medo daqueles risos todos a olharem para ela muito aflita a segurar o porco para que não fugisse.
Minha avó Marquinhas sentou-se com a saia em balão espalhada no sobrado e, espetando o dedo, chamou, com voz disfarçada, cada uma das filhas segundo a sua função:
tu que tens o galo, senta- te minha filha
tu que tens o bacorinho, aninha-te neste chão real
– Minha mãe jura que a minha avó disse assim quando se referiu ao lugar onde ela se devia sentar.
Isaura parou o conto a beber um gole de chá, mas logo retomou.
E minha avó chamou a filha que trazia a bilha e a outra que levava a galinha e sentou em sua volta as quatro meninas.
Minha mãe contava do medo que tinha tido das caras dos senhores, rindo a mostrarem dentes de oiro e a olharem para ela lá do alto da roda que haviam feito em redor do espaço que elas ocuparam.
E a minha avó leu sinas e deu sentenças, coisas que ela dizia ver nas cartas, ou seriam umas que inventava e outras que sabia de verdade serem casos de pessoas que estavam na sala ou eram aparentados.
Todos riam: olha, olha o que diz a cigana, e a perguntarem entre dentes, sobretudo as senhoras: quem será que assim se atreve? e a desviarem-se, que sabiam que no Carnaval valia tudo.
E foi quando se deu a fuga do bácoro.
Parece que minha mãe adormeceu, ou descuidou o segurar no bicho, e este soltou-se, fugiu a grunhir por entre os pés dos foliões, senhores da classe mais alta da cidade.
E minha avó Marquinhas, esquecida da função de ler as sinas, a levantar as saias e a correr pelo salão de baile a tentar apanhar o porco e a deixar as filhas com a galinha sentadas no soalho do salão.
versão encurtada e reformulada do texto publicado na revista SAMIZDAT
5 comentários:
Gostei muito, é real.Escrito com muita sensibilidade e cuidado, cheio de emoções e alguma ingenuidade na pureza.
Escritora, como sempre, está genial:)))
Beijos
Inspiração, as recordações de família são sempre agradáveis de ler e chegamos à conclusão que somos todos muito iguais, até nisso. Continuas a escrever maravilhosamente, sem grandes "torneações" de linguagem, sem artefactos desnecessários, muito bem mesmo.
muito bom!
beij
Cheguei até aqui, seguindo links de blogs. Para ser mais fácil voltar espero que não se importe que "vire" seguidora.
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