Tens dezoito anos e vives para lá da fronteira europeia, ali abaixo onde o calor aperta e às vezes também neva e as naus portuguesas passaram as tormentas. Embarcas em galera sem mais espaço para dobrar uma perna do que o que fica de outros corpos que vieram com o mesmo intuito. Trinta e quatro, ou serão o dobro ou quiçá o quádruplo, metidos a remos que nem juntando moedas de um e outro havia tusto para o combustível. Atravessar o estreito que separa o teu continente da esperança de uma vida próspera. Dias e noites o sol e o frio e mais que tudo, mais ainda que a fome, a sede e esse contradito de ser água em volta. Ao terceiro dia já morreu a menina de bebé na barriga: era tua vizinha e tu tinhas-lhe dito não venhas assim quase parida. Tens dezoito anos e eles prendem-te, pedem-te papéis, falam-te outra língua e olham-te como se de ti viessem todos os males que lhes caem na vida: estupros, roubos, desemprego, violação de mães e filhas e o aumento da gasolina para os passeios de domingo. E os teus olhos de dezoito anos olham como se fosses cão sem dono: ficam com ar assustado no filme que passa na hora do jantar em cada casa pela Europa fora. Dois olhos que queriam dizer do teu direito ao trabalho e a não ver morrer de fome pais, namorada, irmãos e os que seriam os teus filhos.
Tens qualquer idade, mas decerto nem chegaste aos trinta e oito. Não tens os dentes todos que as vitaminas não abundam nos restos que comes. Vives longe. Num país que, de tanto refugiar-se a sua gente em outro terrenos, já quase perdeu o nome. Dão-te por caridade um caldo. Chamas-te qualquer nome e tens dependurado num seio seco mais um filho.
Ontem vi o teu rosto magro e sobretudo vi os olhos. Fazes greve da fome na ilha onde vive o Saramago.
A ti nem sequer posso ver o rosto que trazes tapado em roupas como se fosses proibida. Mas mais que um rosto, é a tua alma que querem escondida. E açoitam-te e apedrejam-te e queimam-te numa pira por razões tão banais como vestires umas calças ou dormires na cama de quem amas. Razões que ditam os homens e os livros que eles escreveram há milhares de anos.
E tu nem tens idade. Dormes na rua ou onde calha e espetas agulhas em cada um dos braços, nos pés e nas pernas, já nem sabes onde, que enlouqueceste há muito: desde tão pequeno que nem sabes quando foi que ficaste esse farrapo. E olham-te como se fosse culpa tua.
E neste mundo onde cada um de vocês vive e luta e sobrevive e grita e chora, na televisão que pago, do que me falam não é do modo de encontrar caminhos onde seres, de que vos dê como exemplo, possam ser gente e felizes.
O que vejo no horário nobre do meu ecrã, na hora onde aqueles que ainda podemos estão fazendo a sua digestão, é um senhor grisalho de seu nome Armando.
Uma afronta é o que sinto e deixo dito.
3 comentários:
Ele precisava era de uma vara a sério. Ele, e os chulos que estão com ele.
Escritora, descreveste vários casos que precisam de facto de atenção!
O Vara que se lixe!!!!
Beijos
Uma excelente chamada de atenção para a palhaçada a que assistimos neste país.
Beijos.
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