Meu querido António
É madrugada e eu levantei-me zonza de sono. Acordei com o lençol gelado. A cama tão fria na zona onde devias deitar-te. E é hoje, que estamos no Inverno, e chove, e tem até nevado. Mas foi assim tal e qual no pino do Agosto.
Tenho a mantilha preta sobre os ombros e tirito. Vou ligar o aquecimento. Agora estou melhor. Mas este frio é outro.
Este frio não se acomoda com as moléculas subindo moles pelas paredes da sala onde te escrevo. Este meu frio não vem do ar circundante que dança numa roda de ar quente. Este frio não me arrefece as solas dos pés que estão morninhas metidos nas pantufas que me deste num Natal passado.
O frio que me tolhe, não impede que os dedos das minhas mãos escrevam cada letra: eu a querer dizer-te, simplesmente, amo-te, morro de saudades, e eles a inventarem palavras soltas, a dizerem do frio que me enregela a alma desde há tantas noites.
Não lhes perdi o conto.
Aponto-as, uma após a outra, tal como as manhãs e as tardes.
Com giz da cor do fogo, faço um traço em cruz como me ensinaste, numa folha de calendário que pendurei na parede. Aquela parede branca da cozinha.
Um dia olhaste para ela de cima abaixo, e pediste, mais ou menos com estas palavras, e os teus olhos luziam com a luz que lhes era de costume, aquela que me alumia hoje apenas de recordá-la:
Não pendures nada neste muro.
Nada que não seja, um dia que aconteça, um calendário em que, um de nós, o destino sabe qual da gente há-de aí escrever, um dia a seguir ao outro, o tempo de falta para nos reencontrarmos, seja no céu ou no espaço, em forma de anjos ou em partículas libertadas de cada um dos nossos átomos.
Foi assim que disseste, e agora deu-se: foi no Natal passado que deixaste de ser o António a entrar, risonho ou rabugento, as botas enlameadas a pisarem cada bocado de tapete.
Serás anjo ou pedaço desintegrado, amo-te demais para ficar chorando.
Estas cartas de amor, como lhes chamo, fazem abater em mim o frio de que padeço, e volto para a cama certa de que um dia destes tenha resposta tua no correio.
Maria Angélica
5 comentários:
Uma muito bela carta de amor...beijos.
Escritota, que linda carta de amor!
Desejo-te um Bom Natal.
Beijos
do Reencontro
O travo amargo dessa morada lapidar
onde as flores cheiram a despedida
o doce desejo incontido do reencontro incerto
que nome dar a dois corpos que se separam
quando a alma é já só uma?
cortante...
Derepente assustei-me, mas no fim relaxei. É bonita esta carta, é de sempre e sabe bem ler.
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