quarta-feira, 15 de abril de 2009

A vendedora



Percebia-se.
Bastava que a tivéssemos olhado para além do reflexo da montra.
Alta, esguia, a pele branca sem borbulhas nem sardas e sem sequer aquele rosado que é sinal de saúde. Pálida. Ressaltam-lhe os olhos muito verdes que ela debrua com um traço negro, cor com que se veste, quase sempre. Nunca rosa ou branco ou uma cor clara como seja verde alface ou um azul celeste. Hoje traz um vestido preto com uma carreira de botões, juntinhos cada um ao outro, desde o decote em bico até um nada antes que a saia termine, um palmo abaixo do joelho. Uma mão aberta que ela tem longa de dedos e desliza sobre os acessórios quando os mostra a um cliente. E sorri-se sem esforço, discreta e comedida como se medisse, com metro de madeira, um tecido de chita sobre um balcão carcomido. E no entanto, ela vende material bem diverso sobre o acrílico transparente do balcão, que deixa ver-lhe as pernas magras e perfeitas e os pés delicados, calçados com sabrinas de verniz muito brilhante. Nunca calça tirinhas e nem saltos altos.
Percebia-se.
Se a olhássemos, perceber-se-ia que ela estava no local errado.
Nem um decote, nem um seio robusto que o dela é magro, se bem que vistoso, mas escondido, mesmo se, num movimento necessário, se debruça um tanto. Terá feito crer que conhecia o ramo, ela que nunca, nem sequer em revista, tinha visto um daqueles objectos que gente variada vem comprar, a desfazer um nó de razões, escondidas num sorriso ou num ditongo que lhes escapa, à laia de desculpa.
Mas depressa apreendeu o prazer por detrás de cada compra. E sabe perceber o fruir que o cliente pretende. Sabe como dizer: a uns de um modo diferente do que a outros, olhando nos olhos, ou baixando-os num preceito natural e casto. É como age enquanto apresenta uma peça mais ousada. Ou quando atende um cliente novo. E insiste, se este hesita ou desconhece a gama recebida.
Uma excelente vendedora, é o que dizem dela.
Sairá por volta das dezanove. Hoje, como de costume, e sobretudo porque é fim-de-semana, olhará a montra. Uma boneca com boca encarnada e o cabelo como crina negra de uma égua. Um plástico imitando carne. Vestiu-lhe umas calcinhas vermelhas e cobriu-lhe o seio com o sutiã que veio emparceirando. Sentou-a ao meio do expositor e, num canto, derramou uma mão cheia de confetti multicor. No chão da montra, ao acaso, colocou um pequeno chicote em couro preto. Com isso pretendia um remate. Mas antes de sair, irá dependurar no pescoço, com as fitas de cetim que traz no kit, uma chupeta muito cor-de-rosa. Uma chupeta disforme, material que estaria ainda desencaixotando e de que mal leu as instruções. Há-de sorrir-se, já na rua, já fechada a porta com as costumeiras duas voltas, já a pesar-lhe no ombro a mala de verniz, em tamanho grande.
**********
Nem os jornais encherão as primeiras páginas, nem os canais de televisão iniciarão os noticiários. Em voz baixa e nos subtítulos, hão-de explicar que a morte se deu por sufocação. Ou falarão em asfixia, o que é só forma diversa de dizer. Porão hipóteses sobre qual terá sido o modo. Informarão que uma chupeta enorme estava dependurada no pescoço da vítima. Farão conjecturas: se terá sido com ela que lhe comprimiram a traqueia. Uma chupeta muito cor-de-rosa enfiada pela boca .
Um utente da pensão barata onde o corpo do homem foi encontrado, tirará uma foto. Meia dúzia de cruzados para a dose, e o jornal mostrará, na edição da tarde, o objecto, presumível causador da morte. Se tivesse maior resolução, poderia distinguir-se uma fiada de botões, muito juntinhos, num vestido preto. Um vestido abotoado quase de alto a baixo, jogado sobre a cama.
Dirá que lhe propôs, brincando: vamos testar o objecto novo e que o namorado anuiu, terá mesmo sorrido: hoje, depois de fazeres a montra.

Percebia-se.
Bastava que a tivéssemos visto. Que a tivéssemos olhado um pouco mais além do reflexo do balcão de acrílico.

17 comentários:

wind disse...

Escritora, muito bem "esgalhado" este conto policial:)
Beijos

Anónimo disse...

o que eu percebo é que me delicio sempre que cá venho! ;)

cg

Ví Leardi disse...

Um prazer ambiguo ao ler este teu trecho....o prazer no triste assim como no feio...!

Maria Augusta disse...

Um texto forte mostrando um prazer fatal...
Abraços.

Rolando Palma disse...

Bastava que a tivéssemos visto...

Suspense.
Deveríamos ter visto... mas não vimos.

Gostei muito.

Jorge Pinheiro disse...

Uma fatalidade pode ser um prazer ou o prazer é uma fatalidade? Deixo a metáfora para a escritora desta excelente história que merece destaque!

Fatima Cristina disse...

O prazer foi todo meu!

Abraços,
Fatima

Marta disse...

Ver mais além...às vezes é tão difícil! Mas não aqui!

abraço

Compondo o olhar ... disse...

é com muito prazer que passo por aqui e me deleito com seu texto, parabens!!

bjocas

francisco disse...

«Uma chupeta muito cor-de-rosa enfiada pela boca». FOI O SÓCRAS!!!

Anónimo disse...

Prazeres diversos! Uma boa postagemk sobre o tema deste mês! Obrigado por ter dele participado!

Mena G disse...

Uma delícia, como não podia deixar de ser, vindo de ti...!

Alexandre disse...

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Marta disse...

Adorei perder-me neste prazer renovado de a ler!

Mateso disse...

Uma vez mais um gosto.
Bj.

Carla Ribeiro disse...

Um texto fascinante. Adorei conhecer este espaço.

nilda disse...

Foi muito bom ler seu texto. A cada tertuliano que visito, uma surpresa.
Beijoca.
Nilda.
http://meucantin5.blogspot.com/

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

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meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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