O chefe Contreiras acaba de tocar a campainha do portão. No intercomunicador, perguntam: tem marcação?
***
Maria Teresa continuará dizendo: Nunca mais consegui andar descontraída. E acrescenta: Quando me falam em crise, o que eu temo não é a falta de dinheiro, mas a loucura, o descontrole, o salve-se quem puder. Loucuras de gente tão normal, assustam-me.
E conta.
***
Na estrada amanteigada em miragens, em tarde de final de Julho, Maria Teresa encostou o carro junto a um muro cor-de-rosa. Uma berma larga e uma sombra convidativa. Assomavam réstias de uma glicínia exuberante e verdes de amoreira. No retrovisor, para onde olhou enquanto desprendia o cinto de segurança, viu os olhos pergolados de uma sombra que era tristeza mesclada de raiva. Ainda não era o medo. Ainda era apenas desespero. Ainda era o sinal da mágoa.
Teresinha, desculpa mas o teu pai está com muitas dificuldades em vender os terrenos da várzea: percebes que falar-lhe nisso seria inoportuno. Não. De todo.
E depois de um silêncio: Porque não falas com a tua amiga Paula?
A mãe a negar-lhe apoio e a jogar-lhe em cara o romance terminado nem fazia meses.
Maria Teresa colocou o banco numa posição confortável e respirou fundo. Percebia que estava sem corrimão naquela escada que descia a pique. Telefonar à Paula! A mãe, quando queria, sabia ser ruim. Encostou a cabeça no estofo e tentou relaxar. Sobre o carro balançavam sombras de flores roxas. As folhas da amoreira cerravam cinzentos no asfalto. Deviam ser seis horas. Nem fez esforço para confirmar se era isso. Numa torre, soaram badaladas que tentou contar, mas logo lhes perdeu o ritmo. Foi-se levando num mais acordado que dormido. E as cenas da tarde a desvanecerem-se como se fora sonho. ´
Era mais como se fora pesadelo. Ela com a secretária e o computador a separá-la do rapaz engravatado que a tratava por Senhora Engenheira com um acinte na ponta da língua que era o jeito de ele saber dizer: Temos muita pena, mas o Banco necessita desse requisito. Depois, teremos muito gosto… E Maria Teresa a sentir o tapete a enrolar-se por baixo da sola das sandálias e sem conseguir parar de esfregar o pé direito naquela ponta que apanhou mais solta. Precisava da merda do empréstimo para a casa. Ficar a viver com ela era mais do que imaginava do inferno.
Um nervoso desusado a murmurar apertando a mão húmida do funcionário que lhe escorregava, mole: É então necessário um fiador… E como se fosse muito ao longe, a voz do funcionário: Tenho muita pena, Senhora Engenheira, mas sem aval, não podemos… Se ele se persignasse, Maria Teresa teria percebido: um acólito perfeito do deus Banco. Mas foi ela que desceu a escada da agência como se carregasse um enorme pecado. Cansada, apertando na mão o telemóvel; preparando-o para fazer chamadas.
A mãe a negar-lhe apoio e a jogar-lhe em cara o romance terminado nem fazia meses.
Maria Teresa colocou o banco numa posição confortável e respirou fundo. Percebia que estava sem corrimão naquela escada que descia a pique. Telefonar à Paula! A mãe, quando queria, sabia ser ruim. Encostou a cabeça no estofo e tentou relaxar. Sobre o carro balançavam sombras de flores roxas. As folhas da amoreira cerravam cinzentos no asfalto. Deviam ser seis horas. Nem fez esforço para confirmar se era isso. Numa torre, soaram badaladas que tentou contar, mas logo lhes perdeu o ritmo. Foi-se levando num mais acordado que dormido. E as cenas da tarde a desvanecerem-se como se fora sonho. ´
Era mais como se fora pesadelo. Ela com a secretária e o computador a separá-la do rapaz engravatado que a tratava por Senhora Engenheira com um acinte na ponta da língua que era o jeito de ele saber dizer: Temos muita pena, mas o Banco necessita desse requisito. Depois, teremos muito gosto… E Maria Teresa a sentir o tapete a enrolar-se por baixo da sola das sandálias e sem conseguir parar de esfregar o pé direito naquela ponta que apanhou mais solta. Precisava da merda do empréstimo para a casa. Ficar a viver com ela era mais do que imaginava do inferno.
Um nervoso desusado a murmurar apertando a mão húmida do funcionário que lhe escorregava, mole: É então necessário um fiador… E como se fosse muito ao longe, a voz do funcionário: Tenho muita pena, Senhora Engenheira, mas sem aval, não podemos… Se ele se persignasse, Maria Teresa teria percebido: um acólito perfeito do deus Banco. Mas foi ela que desceu a escada da agência como se carregasse um enorme pecado. Cansada, apertando na mão o telemóvel; preparando-o para fazer chamadas.
***
Um jipe branco a parar atrás do carro e Maria Teresa a sair daquele estádio de meio adormecida. Maria Teresa a perceber que era mais do que um carro a estacionar na mesma sombra. A não entender o jipe que embatera no seu carro e a ficar de olhos esbugalhados, os mesmos com que chorara depois de ouvir a mãe: Fala com ela, fala com a tua amiga Paula, que já era o homem a dizer-lhe palavras hediondas entrelaçadas com o seu carro e o muro da minha casa e os riscos no muro e a sombra das minhas plantas. E Maria Teresa a não perceber quase nada e a enrolar o pé no tapete, junto à embraiagem. E o homem a abrir a porta do carro e a cuspir cheiros no rosto de Maria Teresa. O rosto dele escanhoado a cheirar a álcool e a perfume caro e a tabaco, ou seriam também outros os cheiros que embatiam em Maria Teresa nem sequer desencostada da posição em que ainda há nada tentara recobrar o sentido de outros misteres. E o homem com lábios húmidos e dentes amarelados de bebida e de tabaco. Um nojo. Teria ela pensado se não fosse já o medo que fez calar o que seria grito, esse era seu costume: saia do meu carro. Maria Teresa a perceber que era, sim, era medo o que estava sentindo. O homem dependurado sobre ela, a falar impropérios e ela muito esbugalhada e muito calada, presa no seu carro; ela que chorara, ficou seca de lágrimas ali sob uma glicínia, ao fim da tarde.
O limpa pára-brisas começou a funcionar, para lá e para cá. Sobre o vidro, esborrachou-se um cacho de glicínia. E o homem a bater pancadas fortes e ritmadas sobre o tejadilho e a vociferar: Sua cabra de merda, tire o carro da minha sombra. Desencoste o carro do meu muro, sua puta!
Maria Teresa percebeu que o medo devia ser aquilo, aquele nem saber o que dizer, ela que sempre retorquia, calada desde que sentira cada palavra cuspida na saliva. Medo, devia ser o sentimento com que olhou as sombras cada vez mais alargadas sobre o carro a condizer com as horas encarnadas no painel de comandos. Sete e meia e o sol a tombar escuros na estrada secundária em que metera o carro na mira de um descanso, antes de decidir o que fazer.
Depois, Maria Teresa a estremecer ao estrondo que foi o homem a fechar a porta do carro. E ela a tremer ligando a ignição e o carro a deslizar batido ainda pelos punhos do homem. Pela janela choviam impropérios.
***
Foi ela que contou, tremendo no vestido azul com um casaquinho branco pelos ombros. Maria Teresa disse que o homem ainda a perseguiu no pequeno jipe, até à estrada principal e quando ela parou no sinal de stop, embateu de novo com o jipe. Bateu em cheio e bramava de dentro, mas eu já não ouvia. Foi ela que contou, tremendo, mal contendo o espanto, sentada na secretária do posto do bairro. Estava de serviço o chefe Contreiras. Maria Teresa não quis apresentar queixa. Contreiras não a conseguiu demover. O medo tolheu-a. Temia represálias e isso superou o desejo de justiça.
Contou apenas.
***
O portão abre-se devagar deslizando por acção de um mecanismo electrónico. Do lado de lá do muro cor-de-rosa e da glicínia, a mansão de um advogado de renome. A amoreira balança sombras no caminho de saibro que Contreiras pisa. Tem consulta agendada. Esboça um sorriso ao entrar no escritório do doutor de leis. Talvez seja do contentamento de saber como delineou o seu serviço nessa tarde. Contreiras, que cerra mais o punho no bolso do casaco.
2 comentários:
Escritora, as tuas descrições ao pormenor são sempre excelentes.
Beijos
Como diz a WIND...
Bom fim de semana
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