sábado, 21 de março de 2009

Deslumbrante


Deslumbrante.
Essa a palavra que empregaria se já soubesse. Ficou em silêncio. Por falta de termo apropriado, ou apenas porque ainda não se habituara a juntar palavras devidas aos sentires. Esbugalhou os olhos. Recuou. Ou nem fez o gesto: apenas o corpo sentiu aquele confinar-se, o mais que possa, ao espaço que lhe é permitido.
Mas deslumbrado era como estava o menino.

- Acorda, filho, são horas. Veste-te para irmos ver o pai.
A mãe a falar e a rodear-lhe o pescoço com dedos que terminavam em unhas redondas. Uma carícia. José Maria a despertar no quarto de um hotel. A madrugada ainda adormecida, e a mão da mãe afagando. Como se fosse a mão de um anjo. Era o que o pai dizia das mãos dela: Mãos de anjo, as mãos da nossa mãe.
José Maria abriu os olhos a sentir bem forte o odor a lençóis dormidos. A cama tem um cheiro doce, não é, meu bandido? Assim lhe falava o pai com o bigode louro dependurado sobre o seu nariz num gesto que era brincado e era muito sério. O gesto de o acordar. E José Maria ronronava, preguiçoso, que os invernos eram frios desde que tinha idade de ir à escola.
Nem isso pensava o menino, na alvorada de um dia que despontaria sobre as areias do deserto, quando já seguiam no comboio em demanda de um bigode ruço que não os afagava ia quase para um ano. Subiriam a serra nesta terra sem neve e sem papoilas, como dissera a mãe, sorrindo, a conversar com a avó Alzira: Nunca mais vou ver as papoilas abrindo e nem a neve.
José Maria preguiçou mais um pouco, mas a mãe deu-lhe voz de pressa e retirou-lhe a meiguice do gesto que mais parecia que o embalava para novo adormecer:
- Vamos. Levanta-te e veste-te. Não queres perder o comboio, pois não, José Maria?
E a mãe rodopiou as flores do robe, que lhe cobria, amolengado, os pés nus, no chão daquele quarto de hotel com o mar em frente. E o deserto. O deserto a dois passos soprando calores de encontro às brisas do mar. José Maria não sabia disso. Ou saberia de ter escutado, que o menino escutava tudo sem parecer que estivesse ouvindo.
- Levanta-te. Rápido.
Disse assim a mãe quase quebrando o silêncio em estilhaços não fosse ter falado tão de leve, tão baixinho, como se lhe dissesse um segredo.
E o menino levantou-se num pulo.

Depois foi o táxi que parou defronte do hotel, na rua sem mais gente que um rapazito varrendo folhas de imprevistas laranjeiras que serpenteavam nos passeios. O ar de espanto da mãe na véspera, chegando no navio: Laranjeiras na rua. Espanto disso, e daquele pó amarelo que cobria o empedrado e cobria quase tudo. Um pó que vinha de onde o sol ainda nem fazia vermelhos. Depois, o menino olhando pelo vidro do carro. Aquele carrão: um Mercedes amarelo e preto com um ar tão cansado como o seu condutor, um negro de dentes muito brancos a sobrarem dos lábios. Um negro de cabelos grisalhos e um sorriso bondoso quando disse: São dez angolar, menina-senhóra. E retirou da bagageira a mala e os dois sacos. Era a bagagem que traziam, que a outra, as malas de camarote e as que tinham vindo no porão do barco, essas, o menino escutara bem o que a mãe lhe dissera: As tuas coisas da escola e os brinquedos, vão depois, noutro transporte. Hão-de chegar um dia destes, está descansado. Dissera-lhe assim, porque chorara e o menino não era de chorar por muito pouco.

O comboio serpenteando serra acima e o menino dependurado na janela. Nem isso. A mãe puxara-o. Que olhasse pelo vidro, que assim não era perigoso. Que visse como era fundo, lá em baixo. E a mãe espetava a mão delgada no espaço antes do vidro. Apontava o precipício verde e negro. Um estender imenso cada vez mais fundo conforme o comboio ia subindo. O menino apoiado ao vidro da janela, encostando o queixo ao braço esquerdo. A paisagem deslizando ao ritmo lento do comboio, e o menino com um olhar de pintar histórias.
José Maria desenhava a paisagem com os olhos redondos do espanto. E o céu ficava-lhe cada vez mais perto.
Horas e mais horas no comboio que mais lhe parecia um comboio de brinquedo. As carruagens de um lado e outro numa curva e ainda mais em outra, e José Maria nem tentando assomar de fora da janela que a mãe logo lhe puxaria o casaquito de malha com dois bolsos. Ela lho vestira por cima da blusa de algodão e dos suspensórios a segurar os calções. Costuras que fizera dias antes de partir, num propósito de viagem. Não os suspensórios, que haviam chegado numa caixa de cartão com letras escritas em papéis bancos colados no papel de embrulho. Letras azuis que escreviam o seu nome. Fora no Janeiro de há dois meses. José Maria fizera oito anos. O pai mandou-te uma prenda. Assim dizia a mãe num tom de alvoroço, enquanto retirava o fio castanho com mãos trementes, que o menino nem percebia se era do esforço, se de ela desejar muito saber o que estava lá dentro. E espalharam-se na mesa da cozinha os pedacinhos vermelhos do lacre.

- Devias fechar a janela que entram os ciscos. - avisou a mãe.
E José Maria andava longe, soletrando a paisagem com os olhos, ainda sem saber de deslumbramentos criados com palavras.
A mala de cartão tinha os cantos arredondados em metal. Uma mala grande. Lá em cima, na rede, parecia ainda maior. José Maria aconchegou a cabeça no colo da mãe e estendeu o corpo magrito pelo banco. O vestido tinha risquinhas vermelhas e cheirava a flores. Adormeceu sonhando. Sonhos com leões e cobras e pretos com lanças afiadas. Adormeceu a subir a serra no comboio, e a pensar que podiam ser comidos pelos bichos se o comboio avariasse. A mão da mãe, descaida no seu peito, deu-lhe um estremecimento. Encolheu os joelhos, voltou-se de lado e adormeceu.
O comboio toda a noite a subir a serra .

Deslumbrados mãe e filho. Ou seria apenas o menino. Seria de saberem que estavam cada vez mais perto, ou seria do que viam, boquiabertos, de olhos ainda piscos do sono mal dormido. Uma muralha de pedra e água. A serra e o comboio que deslizava lento como que dizendo: Foi miragem, foi miragem, foi miragem.
- Dentro em muito pouco chegaremos ao planalto.
Assim lhe disse a mãe. E disse mais:
- O pai deve estar à espera da gente com aquele carro que estava na fotografia. Lembras-te, José Maria?
Lembra-se, muito bem. Um carro grande, todo ele encarnado.

E o menino que não sabe se o coração da mãe dispara, só de pensar em abraçar esse que os espera. E nem sabe se o coração dela lhe fica quase parado, como fica o do menino, ao ver a serra como uma muralha de pedra escorrendo um lençol de água.

José Maria aconchegou a mão esquerda na mão da mãe e ela apertou de muito leve.
Foi assim que o menino percebeu: deslumbrante seria o termo empregue quando um dia soubesse juntar a cada sentir uma palavra.



7 comentários:

Anónimo disse...

(smiley contente) thanks por outro momento de prazer de ler

c

wind disse...

Escritora, fui com as personagens nesta viagem e senti também tudo:)
Excelente conto.
Beijos

Anónimo disse...

... e deslumbrantes são os cantares dos sentires. Como o fim, sem estação.

Marta disse...

um suspiro.
uma prece.
cá dentro, ficou mais uma estrela de brilho forte.

e obrigada por estas e pelas outras.palavras. compreendeste-me tão bem, Maria de Fátima!

Bom dia, para ti, também.
Todos os dias.

Giselle Sato disse...

Sempre um texto inteligente e com o talento costumeiro. Seu Blog é lindo! Parabéns!

Mateso disse...

A linha de Benguela, não?
Belo texto de palavras vivas.
Bj.

Anónimo disse...

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meu honroso quarto lugar

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"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
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