Marília olha.
Um olhar de comiseração é o olhar dela.
A fronte descaída sobre o peito, ela chora o amigo morto.
É já a madrugada entrando.
Pureza e graça, se diria deste amanhecer.
Não o dirá assim Marília, que uma névoa cerrada matou na serra o seu amigo.
Ela chorando, e a aldeia a recobrir-se de rendilhados, a fazer-se donzela decorada com preciosidade.
A brisa húmida a urdir-se em rendas numa infinitude.
-Uma aleivosia! - pensará Marília, exorcizando.
Marília muito triste apesar da urdidura bela, apesar do fino cortinado alvo que se vai tecendo.
E o céu a alvorecer. Um céu que nem se deu em nuvens. Um céu cerrado em névoa a empardecer a alva.
E arrefecera. Esfriara muito.
Dir-se-ia que nevava e, no entanto, Marília sabe que é tão só o mistério do sincelo.
- Oferta dos deuses! - dizia a mãe quando ele se dava; e colocava as mãos em jeito de oração num misticismo e num receio.
O mistério das coisas de Deus, pela madrugada.
E o silêncio recobrindo tudo como se fora unguento.
Um silêncio de eremitério. Um silêncio de pão levedando.
O silêncio triste que é Marília a chorar o seu amigo.
texto apresentado no oitavo jogo das 12 palavras
3 comentários:
Escritora está linda esta prosa.
Beijos
Como gosto de te ler!
Uma dos factos que me entrestecia na minha ausência da blogosfera (por motivos vários), era a circunstância de não ler palavras partilhadas com o afecto dos sentires.
Mas recuperarei o tempo perdido, aos poucos, colocando a leitura em dia de palavras, como estas, que me encheram o coração.
Beijinho e bom feriado ;)
Pois é. Estive com um pé cá e outro lá e acabei por ficar cá.
Tive imensa pena mas, foi imposível a minha ida a Lisboa, naquele dia. Teria tido, tenho a certeza, muito prazer em te conhecer, mas ficará para outra altura, a combinar, pois, afinal, estamos tão perto...
Desejo-te uma óptima semana.
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