quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Lenda da Aldeia das Duas Ruas

Desfez-se de qualquer roupa. Ficou nuazinha.
Uma alça do corpete embaraça-se na ponta do pé no que se vai movendo, afagando de pés descalços o frio da laje.
Nua no quarto sem que haja de luz mais que um pedacinho, uma nesga que bate no espelho e lhe dá em duas a nudez do corpo.

Um pássaro bateu as asas. Poisou no umbral de pedra, vindo de um céu dobrado em dois: o negro de ser noite e a almofada de nuvens que corre pesada. Num jogo de escondidas, aparece e desaparece uma lua pasmada, amarela e redonda.
- Um céu dos infernos, pensou o pássaro aninhando-se no parapeito da janela do quarto da princesa na ala esquerda do palácio.
Um pássaro com olhos iguais a duas contas de vidro, iguais a duas lágrimas que a rainha bordara, em rosa sangue, na capa de burel de Sua Alteza Real Seu Esposo.
Um pássaro de asas muito brancas quando lhe der o sol. Um pássaro dormindo, com as asas enroladas e o bico escondido. Um pássaro aninhado sobre a pedra de xisto mesmo por debaixo de uma torre cilíndrica terminada em cone.

No quarto, a menina dança em passinhos. Da luz que entra pela fresta, mal ela vê no espelho o cabelo negro que desfez das tranças e quase lhe tapa o tufo arredondado em que lhe termina o ventre muito liso e muito alvo
Não há sons.

Na extremidade da aldeia oposta ao palácio, no fim do povoado, Ernesto dorme.
Ernesto, pastor de vacas e tocador de harmónica, dorme sereno entre quatro paredes de pedras sobrepostas por onde entra a luz da lua. Ficam luazinhas salpicando a face adormecida de um Ernesto ainda menino.
Não há silêncio.
Na oficina há um rumor dorido, cavo, doce: é o pai de Ernesto alisando madeira. O som nem é mais do que o ir e vir da plaina, um som de nem quase se ouvir em outro lado. Nem seria ouvido no andar de cima, não fosse singela a fiada de tábuas mal unidas que forma ao mesmo tempo, tecto da oficina e sobrado do quarto.
O carpinteiro avança e recua o corpo como numa dança, debruçado sobre a tábua aí pelo tamanho, bem medido, de uma pessoa que fique estendida e tenha, da cabeça ao bico do dedo grande, coisa como sete palmos. Isso se forem medidos pela mão do carpinteiro, uma mão tão enorme como o seu coração, a avaliar pela fama de boa gente que ele tem no povoado.

Na rua detrás há uma fonte.
Chamam-lhe rua detrás porque, havendo na aldeia apenas duas ruas, uma é a que passa em frente do palácio, calcetada com pedras quadradinhas batidas a maço, e a outra é aquela, mais entortada em esquinas de casas, e meio desfeita naquele bocado junto à casa de Ernesto. É aí que existem dois degraus onde se sentam as mulheres conversando na espera que se encham, com a água que sai por cada uma de três bicas, os cântaros, as bilhas ou os alguidares, de madeira, metal ou barro.
Era costume ver por lá passar Sua Alteza Real a Menina-Princesa, que é como lhe chama o povo. Vem sempre acompanhada pela aia,a mesma que entra pelo quarto, esbaforida de susto, angústia ou apenas farta da correria que vai na ala oposta do palácio onde, em agonia, terminou o reinado de D। Álvaro, morto por espada em defesa da honra de sua filha.
A aia depara-se com a Menina-Princesa, dançando nua em frente do espelho.
- Alteza…
Balbucia espantada e ainda mal retomando o ar que lhe faltara na corrida, as mãos a segurarem acima dos joelhos as compridas saias, tão em desalinho como o palácio desde que anunciaram a real morte.
E a Princesa rodando-se nua em frente do espelho:
- O meu pai morreu?!
A pergunta feita e ela equilibrando-se num pé. Pode ser dançando, mas a juntar a isso o facto de ela andar despida, pode bem ser um despropósito.
É o que pensa a aia que se esbugalha de ver assim a sua menina. E amedronta-se porque se lembra da ida que fizeram à fonte, dos passos que deram mais abaixo, do que a Menina-Princesa lhe disse no instante de ver surgir Ernesto: espera um poucochinho, eu não me demoro. E correu pelos campos e nunca mais vinha a Menina-Princesa e ela, simples aia, esperou sentada na fonte, e a sua menina, como ela nunca a chama, só apareceu já muito de noite. Ficou ela ralada, mas não houve quem desse pela ausência no palácio, salvo seja a rainha que perguntou ao outro dia:
- Por onde andaram ontem?
E a aia contou-lhe uma história tão enredada de mentiras que nem percebeu porque nem lhe ralhara Sua Alteza a Rainha que até esboçou um sorriso e disse simplesmente: podes ir.
A aia permanece em espanto daquela pergunta quase afirmada: “o meu pai morreu?!” dizendo a Princesa, como se soubesse, e nem um choro, nem uma lágrima. E ainda se dançando. Era a aia pensando num tom de espanto, que se fosse palavra seria em tom de ralho. Mas ela que é apenas aia, só responde à pergunta e faz o que lhe foi ensinado que é encomendar, é ir rezando:
- Saiba Vossa Alteza que Sua Alteza o Rei seu Paizinho morreu sim, Princesa.
E repetiu benzendo-se: morreu Sua Alteza, o Rei, seja sua alma recebida no Trono de Deus.
E a menina parada, nuazinha olhando-a e a aia recordando o fim de tarde em que apareceu o guardador de gado. E foi tapando os olhos. Não que nunca a tenha visto nua, que sempre lhe prepara o banho e é ela que a veste, mas aquele despropósito de dançar nuazinha, de andar saracoteando-se e olhando-se no espelho, a aia morre de medo que são coisas do demo. Basta que erga um nadinha a palmatória e o coto de vela alumia o corpo nu, muito branco, onde a aia adivinha as mãos de Ernesto. Credo! Como se enchera de coragem a Menina - Princesa. E a aia benze-se, atabalhoada, com a mão esquerda dizendo um ámen misturado na saliva que lhe ocupava sempre cada um dos cantos da boca quando estava aflita. E voltou a benzer-se ao pensar que Ernesto dormia a sua última noite tal qual ouvira ainda há pouco do lado oposto do palácio. E a aia foi retomando o fôlego.
continua
aqui

13 comentários:

Benó disse...

Gosto de lendas.
Fiquei presa do principio ao fim mas vim comentar no principio.
Óptimo que tenhas escrito em letras maiores que o normal.É de mais fácil leitura.

Um Bom Natal, minha amiga e continua a encantar-nos com contos e lendas.

O Micróbio II disse...

Vou continuar "aí"... :-)

Menina Marota disse...

"...semanalmente, serão divulgados no item “Blogues em Destaque” (à direita da página), aqueles que pelo seu conteúdo ou carisma, chamaram a atenção da autora desta página."

É esta a mensagem que refere os motivos porque estão, semanalmente, 3 blogues em destaque...

Esta semana, a minha escolha recaíu no Repensando porque gosto da sua autora e da sua escrita..

O Selo da atribuição do destaque pode ser levantado no próprio blogue ou enviado pelo correio se assim for pedido através de email.

Um grande beijo e o desejo de um FELIZ NATAL

xistosa, josé torres disse...

Não, não "premi" ou cliquei, "aqui".
Sei que seria levado para outra narrativa mais fabulosa que a circum-navegação.

Nem sei se gosto de histórias de princesas e reis, altezas ou quejandos.
Gosto de ler e desenvolver ...
Se morre alguém, acaba tudo.
Ou há vida para além da minha inteligência.

Quero desejar-lhe um bom Natal.
Junto com quem mais ama e deseja estar, ou nem isso.
Por vezes temos pensamentos ... ainda bem que só pensamos.

Sou um maldizente.

mas que o 2009 traga um bom aumento nas pensão de reforma, como eu vou receber, (segundo o JN de hoje). Fico rico em pouco tempo ...
Viva o Sócrates!!! (mas baixinho para ele não ouvir!!!)

Lmatta disse...

Gostei
Um Bom Natal

O Micróbio II disse...

Um Santo Natal

Mateso disse...

Virei ler com mais calma tal como a escrita o pede e meece.
Agora só os votos.
Um Feliz Natal.
Bjinho

Ana Paula Sena disse...

Boas Festas! :)

Um beijinho e parabéns pela publicação!

P.S. - Passei também pelo TristeAbsurda... :)

wind disse...

Escritora vim desejar-te um Bom Natal na companhia dos teus.
Beijos

Mateso disse...

Passou o Natal e aqui estou a ler-te encantada.
Lindo.Muito.
Obrigada pelas palavras deixadas lá no meu azul.
Bj.

wind disse...

Desejo-te um óptimo 2009:)
Beijos

Fá menor disse...

Que este seja um Ano mais fraterno, justo e solidário em que cada um faça a sua parte.

Bom Ano com muita paz e Amor!

Bjs

CNS disse...

É bom ter-te aqui, e estas tuas palavras para respirar um conto belo como este. Teu.

um beijo e um Feliz 2009 para ti!

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein