Era manhã de Abril. O carro rodava lento. Descapotável novo que o pai lhes oferecera no dia do noivado. Maria Rosa estava num segredo daquela gravidez de três meses. Cabelo preso num lencinho de bolas, ria de uma redobrada felicidade. O carro rolou sobre a ravina no embate que lhe fez o autocarro.
É de novo Abril.
Maria Rosa está sentada sobre as pernas dobradas. Costura uma bainha. Usa uma tesoura. Borda. É um tecido mole. Talvez cetim. Uma peça enorme a cobrir-lhe o colo de branco, a tapar-lhe o luto que ela sempre veste. Luto igual ao do lenço que lhe tapa o cabelo branco. Só uma madeixa teima sobre os olhos que levantou ainda há pouco, no momento preciso em que rastolhou a trepadeira. Balbuciou, que era como sempre se fazia o seu pensar.
- Voltaram as andorinhas.
Olhava-as com seus olhos enormes. Olhos de brilhos de muito antes de este estar ela cosendo um tecido branco e reparando que abria a Primavera. Brilhos que redobravam sempre que chegava um bando de andorinhas. Olhos azuis, como o era o céu nessa manhã.
Havia um edifício grande por detrás do assento que ela fazia sobre uma manta de xadrez, em verdes e amarelos, estendida sobre relva. Entravam e saíam, na porta pequena, senhoras de branco com toucas na cabeça e os nomes bordados em azul sobre os fatos. No espaço, que era um parque ou jardim, cercado por um muro alto, havia, dispersos, bancos e mesas e, num lago, chapinhavam patos. Fazia uma brisa amena. Passeavam pessoas, algumas sozinhas, outras em pequenos grupos, algumas acompanhadas por senhoras de touca, com o nome escrito sobre a roupa: Elvira Matos, Beatriz Furtado, ou Bárbara S. simplesmente, que é esta que se debruça sobre o tecido que Rosa tem no colo.
-Bom dia Dona Rosa. Quase pronto?
Os olhos de Maria Rosa incendiaram-se de brilhos, alteou nas mãos a peça que fazia em favos pequeninos debruados em linha de prata.
- Olhe, não estão lindos?
E sorria. Linda era ela nos seus muitos Invernos.
- A menina acha que ainda tenho tempo? Ela marcou a data para dia onze do mês de Abril. Está quase, não está? Vi as andorinhas…
E apontava para os ninhos do ano passado, dependurados nas telhas do prédio, um tanto abaixo do caramanchão de buganvília em que se sentava.
- Vai dar tempo, sim, Dona Rosa. Ora mostre o vestido, posso?
E a enfermeira segurava o vestido comprido, muito rodado por via de umas pregas que se soltavam da cintura e escondiam, nas dobras, folhinhas bordadas em verde-claro.
Era o decote que Maria Rosa enchia de favos.
-Lindo. Disse, comovida, a enfermeira.
- Sabe, minha senhora, ela há-de subir ao altar este ano. Tem andado a correr mundo, mas este ano vem buscar o vestido, eu sei. Por isso, tenho que dar pressa para o terminar.
Era assim cada ano. Maria Rosa vestia uma noiva: sua filha voltando para se vestir de noiva. Para vestir o vestido que sua mãe cortava, pespontava, chuleava e bordava. Sempre diferentes, um em cada ano. Sempre a sua filha se noivando.
Maria Rosa desligou-se da senhora de branco. Esqueceu-a.
Debaixo da buganvília só se via a linha prateada subindo e descendo e, mais de perto, o aninhado do nascer de mais um favo.
A filha de Maria Rosa nem nascera há quarenta e dois anos.
Maria Rosa não recuperara.
Casou vinte e cinco noivas com os seus vestidos. Vinte e cinco noivas a quem chamou: “minha querida filha” e beijou desejando “que sejas feliz, minha querida!”.
Naquele Abril, casaria a senhora de branco, a que conversou com ela, ainda há pouco.
(há hospitais que olham assim cada doente: uma pessoa! e trata com ternura os pequenos elos de cada uma com a sua Vida)
3 comentários:
Escritora, uma prosa que deixa um nó na garganta.
Beijos
Vinda do Eremitério,
passei para te conhecer.
Gosto da tua escrita!
Beijos
lemos e ficamos com as palavras ás voltas dentro de nós acordando emoções, recriando outras....e a nossa humanidade fragilizada a pensar afinal o k é...
por favor vê o meu email e dá-me resposta urgente, urgentíssima - como dizia uma qq personagem..
boa noite
bjs
Luz e paz contigo
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