terça-feira, 8 de julho de 2008

Mãe da noiva


Era manhã de Abril. O carro rodava lento. Descapotável novo que o pai lhes oferecera no dia do noivado. Maria Rosa estava num segredo daquela gravidez de três meses. Cabelo preso num lencinho de bolas, ria de uma redobrada felicidade. O carro rolou sobre a ravina no embate que lhe fez o autocarro.

É de novo Abril.
Maria Rosa está sentada sobre as pernas dobradas. Costura uma bainha. Usa uma tesoura. Borda. É um tecido mole. Talvez cetim. Uma peça enorme a cobrir-lhe o colo de branco, a tapar-lhe o luto que ela sempre veste. Luto igual ao do lenço que lhe tapa o cabelo branco. Só uma madeixa teima sobre os olhos que levantou ainda há pouco, no momento preciso em que rastolhou a trepadeira. Balbuciou, que era como sempre se fazia o seu pensar.
- Voltaram as andorinhas.
Olhava-as com seus olhos enormes. Olhos de brilhos de muito antes de este estar ela cosendo um tecido branco e reparando que abria a Primavera. Brilhos que redobravam sempre que chegava um bando de andorinhas. Olhos azuis, como o era o céu nessa manhã.
Havia um edifício grande por detrás do assento que ela fazia sobre uma manta de xadrez, em verdes e amarelos, estendida sobre relva. Entravam e saíam, na porta pequena, senhoras de branco com toucas na cabeça e os nomes bordados em azul sobre os fatos. No espaço, que era um parque ou jardim, cercado por um muro alto, havia, dispersos, bancos e mesas e, num lago, chapinhavam patos. Fazia uma brisa amena. Passeavam pessoas, algumas sozinhas, outras em pequenos grupos, algumas acompanhadas por senhoras de touca, com o nome escrito sobre a roupa: Elvira Matos, Beatriz Furtado, ou Bárbara S. simplesmente, que é esta que se debruça sobre o tecido que Rosa tem no colo.
-Bom dia Dona Rosa. Quase pronto?
Os olhos de Maria Rosa incendiaram-se de brilhos, alteou nas mãos a peça que fazia em favos pequeninos debruados em linha de prata.
- Olhe, não estão lindos?
E sorria. Linda era ela nos seus muitos Invernos.
- A menina acha que ainda tenho tempo? Ela marcou a data para dia onze do mês de Abril. Está quase, não está? Vi as andorinhas…
E apontava para os ninhos do ano passado, dependurados nas telhas do prédio, um tanto abaixo do caramanchão de buganvília em que se sentava.
- Vai dar tempo, sim, Dona Rosa. Ora mostre o vestido, posso?
E a enfermeira segurava o vestido comprido, muito rodado por via de umas pregas que se soltavam da cintura e escondiam, nas dobras, folhinhas bordadas em verde-claro.
Era o decote que Maria Rosa enchia de favos.
-Lindo. Disse, comovida, a enfermeira.
- Sabe, minha senhora, ela há-de subir ao altar este ano. Tem andado a correr mundo, mas este ano vem buscar o vestido, eu sei. Por isso, tenho que dar pressa para o terminar.
Era assim cada ano. Maria Rosa vestia uma noiva: sua filha voltando para se vestir de noiva. Para vestir o vestido que sua mãe cortava, pespontava, chuleava e bordava. Sempre diferentes, um em cada ano. Sempre a sua filha se noivando.
Maria Rosa desligou-se da senhora de branco. Esqueceu-a.
Debaixo da buganvília só se via a linha prateada subindo e descendo e, mais de perto, o aninhado do nascer de mais um favo.
A filha de Maria Rosa nem nascera há quarenta e dois anos.
Maria Rosa não recuperara.
Casou vinte e cinco noivas com os seus vestidos. Vinte e cinco noivas a quem chamou: “minha querida filha” e beijou desejando “que sejas feliz, minha querida!”.
Naquele Abril, casaria a senhora de branco, a que conversou com ela, ainda há pouco.

(há hospitais que olham assim cada doente: uma pessoa! e trata com ternura os pequenos elos de cada uma com a sua Vida)

3 comentários:

wind disse...

Escritora, uma prosa que deixa um nó na garganta.
Beijos

Fá menor disse...

Vinda do Eremitério,
passei para te conhecer.

Gosto da tua escrita!

Beijos

Conceição Paulino disse...

lemos e ficamos com as palavras ás voltas dentro de nós acordando emoções, recriando outras....e a nossa humanidade fragilizada a pensar afinal o k é...
por favor vê o meu email e dá-me resposta urgente, urgentíssima - como dizia uma qq personagem..
boa noite
bjs
Luz e paz contigo

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

desafio dos escritores
meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein